Um dos piores sentimentos que o ser humano pode experimentar é a rejeição. Não há como avaliar entre o mais ou o menos dolorido processo de rejeição, seja na escola, na rua, nos grupos, na hora de ser escolhido para um trabalho, em casa, pelos pais, irmãos ou até quando você rejeita você mesmo, baseado em preconceitos e por se confundir e acreditar na injúria alheia. Já se sabe que o trauma mais dolorido e difícil de tratar é aquele que é continuo e demorado. Então, é na família onde todo o desequilíbrio tem origem, porque a maioria das pessoas está dividida entre os que ficaram ou não com suas famílias até os 18 anos, pelo menos. O que é mesmo família? É quem cuida ou quem procria?
A vida parece ser uma carga pesada para aquelas pessoas que não tiveram pais fixos, por alguma razão, isto é, foram criadas em diferentes casas ou por pessoas diferentes que não eram os seus pais, ou ainda aqueles que nunca tiveram uma família e foram criadas em orfanatos. Será que é menos pesada para quem tem pais casados, consagrados, violentos e ignorantes? Muitos sequer têm força para lutar por uma vida sadia pela ausência a auto-estima, a qual é construída por carinho, abraço, elogio e acima de tudo pelo sentimento de pertencer a alguém no sentido afetivo, não naquele equivocado onde pessoas se juntam e acham que não propriedades — inclusive pais que pensam que seus filhos são propriedade, como cavalos que se escolhe para o transporte de carga. É muito comum uma mãe reclamar que tal filho não pára em casa porque ela é incapaz de perceber que quando o filho não pára em casa pode ser o que lhe falta ele não acha em casa: aceitação – que é definida basicamente pelo nível de afeto expressado e o ser humano precisa de afeto para ser equilibrado durante toda a vida.
Uma senhora teve quatro filhos, todos homens. O mais velho era o favorito e ela não escondia. Todos os planos eram traçados para a vida dele até na mesa da cozinha, onde todos se reuniam para o café da manhã. Quando um dos outros perguntava alguma coisa ela mandava se calar e tomar o café porque entendia que aquilo era uma interrupção no assunto principal da mesa: o filho mais velho! Quando um dos meninos brigava na rua ou na escola e a mãe recebia uma queixa, poderia se preparar para uma boa surra, daquelas que a mãe bate e dá sermão moralista ao mesmo tempo, fazendo a criança se sentir o pior ser do mundo – confundido, atordoado, ferido.
Quando o filho mais velho aprontava qualquer coisa, tanto na escola como na rua e a mãe recebia uma queixa, ela dizia que iria tomar as providências quando chegasse em casa mas na verdade ela abraçava o filho e dizia: macho é assim mesmo meu filho! Aos poucos a vizinhança já não mais reclamava para não perder a amizade daquela mulher. O filho virou o terror da vizinhança e se envolveu em gangues. Quando a família começou a receber queixa dos pais e não mais da mães, o meu personagem não pensou duas vezes: convenceu o marido e a família mudou de bairro mas o filhinho querido não deixou de ser privilegiado e os demais nunca deixaram de ser “os outros”, em tudo. A mãe ficava deprimida quando o filho passava tempos sem vir em casa…
A mãe nunca se submeteu a uma terapia e a história veio através de um dos “outros”, Matheus, o mais novo. Cheio de dificuldades com todas as namoradas, o meu cliente não tinha a menor ideia de onde estava a chave do seu “problema com mulheres”. Quando solicitado a fornecer maiores detalhes sobre a vida atual do seu irmão preferido da mãe, a resposta não poderia ser outra: nenhuma mulher presta. A minha mãe faz ele bricar com todas as mulheres. Ele já casou e já se separou. Nesta família de quatro homens, nenhum tem uma história feliz de relacionamentos afetivos. Aprofundada a investigação da vida afetiva da mãe antes de casar, a avó confidenciou que o pai não tinha sido o amor da vida da mãe e sim a “escolha” da família.
Também chegou à conclusão que o irmão, preferido da mãe, era o mais parecido com o seu avô paterno, falecido, que tinha eleito a sua mãe como a preferida, entre os demais irmãos dela, ao ponto de escolher o homem que casou com a sua mãe. Não se sabe se a mãe chegou a gostar de algúem da sua própria escolha. Essa história de pai escolher namorado ou marido das filhas tem a ver com a sua própria imagem emocional conturbada, presa em alguma fantasia não realizada e doentia, embora comum em culturas fechadas como a indiana e dos países muçulmanos, e uma prática em pequenas províncias do Nordeste do Brasil, até os anos 80. É diferente daquela situação em que a família se preocupa, e tem que se procupar, com quem a filha vai casar ou está namorando ou “ficando” e até com as amizades comuns, sem neuroses. Nestes casos, há fatos reais, por exemplo: se o rapaz é de uma família equilibrada, se ele é equilibrado, se não tem vícios, se tem um projeto de vida baseado em estudo, profissão, carreira etc. Isso é importante porque ninguém conserta ninguém com uma barriga ou com um casamento forçado.
A rejeição pura e simplesmente, porque “eu não gosto daquele cara”, pode ter um fundo emocional, não resolvido, escondido na sombra de quem rejeita. Falamos aqui mais de filha porque tradicionalmente as famílias não se preocupam com quem o filho vai se casar. Seria desequilíbrio emocional da mãe a grande maioria dos casos de briga e ciúmes da nora? É lamentável que a sociedade tenha esse preconceito de não se preocupar, em termos genéricos e sadios, com quem o filho está ficando, namorando e vai casar, especialmente porque o homem demora muito mais a amadurecer que a mulher e pode simplesmente não escolher mas ser escolhido, por várias razões, inclusive o forçamento de barra através da gravidez não desejada nem planejada a dois. A maioria dos pais peca nesse aspecto e o pai especialmente é relapso nesse cuidado com o filho porque ele acha e foi educado a achar que ser homem é tudo. O cantor, depois ministro, Gilberto Gil diz, em uma de suas canções: “quem dera, pudesse todo homem compreender, oh mãe, quem dera…”.
A rejeição da mãe de Matheus teve efeitos perversos em todos os aspectos da sua vida emocional. Fez o primeiro e o segundo graus com dificuldade e sempre esteve entre os piores da sala. Sofreu de asma entre 11 e 16 anos, e quando o clima esfria demais ele ainda tem problemas respiratórios. Nunca quiz fazer um concurso público porque “sei que nunca vou passar”. Não tentou vestibular pela mesma razão. Mesmo para pagar suas contas em banco ele deixa quem quizer entrar na sua frente na fila. Lembra que sua mãe usava sempre a seguinte frase quando ele aprontava alguma coisa: “não sei a quem esse menino puxou”. Traduzindo: você não tem nada a ver comigo! Sofre de ejaculação precoce e nos últimos dois anos tem fumado maconha, o que agrava ainda mais seus problemas respiratórios-físico-emocionais, pela supressão neuronal que a maconha proporciona. Asma tem a ver com questões emocionais não resolvidos. É lento em tudo, não consegue ler um livro até o final e acima de tudo é extremamente pessimista. No emprego, é aquele que faz o trabalho de todo mundo e naturalmente o chefe faz dele o que quer. Confessa que quando quatro rapazes de Brasilia, filhos de gente rica, botaram álcool e atearam fogo em um índio que dormia em um ponto de ônibus ele achou “legal” e nem ficou “com pena do índio miserável” que morreu.
Quando perguntei sobre política, Matheus disse que só participava das manifestações políticas pela farra e pela baderna, não importava quem estava organizando porque “no meio do povão, eu consigo gritar”. O que mais impressiona em Matheus é a sua vontade de “sair disso”, não muito comum nas pessoas com quadro emocional semelhante e ainda mais vivendo sozinho em uma cidade grande. A rejeição boicota a auto-estima, a capacidade de lutar, de ver como uma pessoa cheia de capacidades. É um veneno que as vezes vem pelas mãos que supostamente deveria estar revestidas do mais puro amor, incondicional, de pai, de mãe e de irmãos.
Por José Joacir dos Santos jjoacir@gmail.com