Por José Joacir dos Santos
Laila apareceu pela primeira vez na vila na festa de São João. Todos olharam profundamente para ela, especialmente os homens. De onde Aluízio trouxe aquela mulher que agora apresentava como companheira? O assunto se tornou o tema central da conversa entre os homens da vida. As mulheres se perguntavam: se Aluízio viveu tanto tempo sozinho, por que agora arranjou essa mulher que ninguém sabe de onde veio? Aluízio não era muito de conversar com as mulheres da vila. Antes de aparecer com Laila, em público, ele vivia sozinho na pequena casa de sua propriedade, a dez minutos a pé da vila. Dizem que a família dele tinha recursos, mas muitos faleceram e outros se mudaram para onde ninguém sabe. A esquisitisse de Laila parecia se casar muito bem com a de Aluízio. Ambos eram altos, magros, de olhos azulados. Corria o boato de que ele tinha uma vida secreta que só os homens da vila sabiam, mas ninguém tinha provas. Tudo naquela vila tinha algum segredo e todo mundo respeitava esse código. As fofoqueiras da vila não se continuam de tanta curiosidade e no próximo evento da vila convidaram ela para participar: preparar o enterro de uma criança.
Quando Laila chegou ao local, uma das mulheres se apresentou e perguntou se ela tinha experiência com enterro de crianças porque a mulher da vila que fazia isso mudou-se para outra cidade, longe. Respondendo apenas com o azul de seus olhos, Laila começou a juntar os papéis da mesa destinados a fabricar o pequeno caixão do bebê, que faleceu dois dias depois de nascer. As outras mulheres se dividiram nas tarefas. Naquela vila, até os enterros eram motive para as mulheres se reunirem e atualizarem suas fofocas. A vila ficava no alto das montanhas do sertão. Roupas antigas de crianças eram guardadas nos baús para reaproveitá-las nos enterros dos bebês, que eram frequentes. Com a maioria dos maridos ausente, trabalhando longe de casa, há quem diga que alguns daqueles bebês não eram filhos dos maridos legais e que as mulheres guardavam a cumplicidade de seus segredos, por isso apressavam o enterro deles.
Silenciosamente, Laila concluiu a caixão de papelão. O bebê, sem nome, sem batismo, agora parecia um anjinho, vestido de azul, com algumas flores ao redor da cabeça. A mãe achou tudo muito lindo, mas não derramou uma só lágrima. O grupo se organizou e partiu para o pequeno cemitério a uns cinco minutos da vila. Enquando caminhavam, elas conversavam e tentavam tirar alguma informação sobre a vida de Laila, sem sucesso. “Não gosto de falar do passado”, disse ela. “E o Aluízio, lhe trata bem?”, perguntou outra mulher. “É meio grosseiro, mas eu dou conta”, respondeu. “Pois é, ele vivia sozinho há muitos anos…”. “Ele me disse”, respondeu Laila. “Que tal você ficar sendo responsável pelos bebês, Laila?”. Sem problemas, pode me chamar…
O caixão foi enterrado e o silêncio foi interrompida por uma das mulheres com a oração da Ave Maria. Todas caminharam de volta para a vida, cada uma na direção de sua casa. A mais velha, viúva, parou para agradecer a Laila. Ao apertar a mão da mulher, um laço de fita, com alguns cabelos amarrados, caiu de suas vestes. Ela se abaixou para pegá-lo. É do bebê? Sim, respondeu Laila. “Vou guardar como lembrança…”. Você teve filhos? Não, nunca tive e não vou tê-los – disse Laila… duas daquelas mulheres, vizinhas, seguiram conversando no caminho de casa: Ela parece boazinha, não é? Pois é, comadre, ela não perguntou nada, simplesmente fez tudo, calada… deve ser o jeito dela… pelo menos agora Aluízio tem alguém visível… ah, sim, respondeu a outra.
Depois daquele dia, de acordo com a mulher mais velha, que registrava tudo o que se passava naquela vila, Aluízio apareceu na vila uma vez o outra, sozinho, especialmente para comprar cachaça e uma coisa ou outra de comida. Ele tinha uma conta pendurada no armazém da vila e só a saldava quando vendia o algodão ou o feijão que colhia no seu roçado. Laila só apareceu três meses depois quando outra criança recém-nascida faleceu, mas nunca acompanhada do “marido”. A vila só se movimentava coletivamente uma vez ou outra quando aparecia um padre para celebrar a missa, no São João, ou um político para prometer tudo o que jamais cumpriria.
Dois anos depois da primeira aparição de Laila na vila, ela procurou a viúva para dizer que seu marido havia desaparecido. As duas conversam e ela repetia que ele tinha saído, como de costume, para o mato, ao entardecer, dois dias atrás e não tinha voltado. Ela mesma tinha feito uma busca nas imediações das terras onde ele cultivava ou passava o tempo, e nada. As demais mulheres logo apareceram, com seus filhos nos braços, enquanto outros brincavam pela rua, e a notícia se espalhou. Alguns homens fizeram buscas ao redor da vila e ninguém tinha visto nem sabia de nada. As mulheres se reuniram em torno de Laila para prestar-lhe solidariedade. De cabeça baixa, ela não chorou, não deu uma palavra. Daquele dia em diante a mulher se isolou ainda mais. As mulheres estranharam o comportamento dela. Certo dia, mandaram um menino chamá-la para preparar o enterro de mais “um anjinho” e Laila mandou dizer que não podia. Como assim, ela nunca disse não… A mulher mais velha teve que substituir Laila na preparação do caixão da criança e o assunto do encontro era um só: Laila.
Na manhã seguinte, a mulher mais velha, a viúva, decidiu fazer uma visita à “pobre Laila”. De longe, ela notou que a porta da casa estava aberta e não saía fumaça pela chaminé, como de costume. Laila, você está em casa? – gritou. Não houve resposta. Temerosa, a mulher coçou o queixo e decidiu ir até a porta daquela casa e se assustou: Laila estava deixada no chão, despida, com sinais de violência, morta. Meu deus! A mulher apressou o passo em direção à vila e foi avisando a quem encontrava que Laila estava morta no chão da pequena casa. Não demorou muito e a vila inteira correu para ver o acontecido.
Sim, Laila havia sido violentada com crueldade. Pelos rastos deixados na poeira do chão da casa, a violência foi cometida por mais de um homem. As mulheres da vila não comentavam, mas sabiam que mulher sozinha, sem marido, era alvo de homens, inclusive aqueles mesmos da própria vila. Não havia polícia naquela vila. Alguém foi até a cidade próxima e um coroinha da igreja veio encomendar o corpo. Laila foi enterrada no cemitério da vila dentro de uma rede. Era o costume local, não tinha onde comprar caixão.
Nos dias que se seguiram, o silêncio tomou conta da vila, especialmente entre a mulheres. Nenhuma queria falar no assunto. Meses depois, um padre apareceu para a missa. Ao terminar, disse para a população da vila que as terras que pertenciam a Aluízio, que não tinha herdeiro, voltava a pertencer à igreja, a casa onde morava seria derrubada e o terreno liberado. Dois homens foram designados para o serviço de derrubada da casa. Do lado esquerdo da casa, próximo à parede de taipa, a picareta bateu em uma tábua dura no chão. Ralou o calçado sobre a tábua e escutou um barulho oco. Pegou a picareta e tentou arrancar a tábua. Para a sua surpresa, havia um buraco e um corpo ali guardado. Largou tudo e foi até a vila chamar os outros homens para ver o achado. A vila inteira cercou a casa com curiosidade, até as crianças. Sim, alguém reconheceu, era o corpo de Aluízio, despido, com as mãos atadas.
As conversas se multiplicaram e as mulheres voltaram para suas casas. Os homens da vila não deixaram as mulheres verem o corpo. Uma hora depois, eles se reuniram e enterraram o corpo, já em decomposição, ao lado da cova de Laila. Duas semanas depois, a conversa na vila girava em torno de um casal que tinha se separado e a mulher estava de mudança para a cidade grande, com seus três filhos. Ela tinha descoberto que os três filhos da mulher que morava perto da roça do seu marido eram filhos do marido dela, todos com idades semelhantes às dos seus próprios filhos. Aparentemente ninguém mais se lembrava de Laila nem do marido dela. E a vida segue. 07/12/2024
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