Por Luciano Magalhães Melo (*)
Algumas pessoas com o córtex visual primário lesionado conseguem ver sem ter a consciência de estarem enxergando
Se você leu o título, provavelmente supôs que a seguir virá um texto sobre aqueles tão comuns que olham, mas não veem nada. Esses que não valorizam as evidências, mas se apegam a teorias escusas. Sua adivinhação meu caro, mal se aproxima da intenção real que me fez escrever estas linhas, como verá. Meu propósito é mais amplo: é fazer você duvidar de suas certezas e compreender que a sua consciência, a minha e a do negacionista emergem como subproduto de uma atividade cerebral incógnita. Para isso, usarei o exemplo da visão cega, que mescla os conceitos a princípio opostos, os de percepção e de inconsciência.
Nossa interpretação do mundo muito depende da visão. O olho possui um sensor, a retina, especializado em transformar a luz em impulsos elétricos. Esses são encaminhados para a parte posterior do cérebro, o córtex visual primário, local da interpretação objetiva dos estímulos luminosos. Após a atividade iniciada nos olhos, o córtex visual primário se torna um centro a ativar outras regiões cerebrais, que ocupam quase a metade do cérebro, conectadas em rede. Assim, conquistamos a experiência da visão.
Lesões cerebrais específicas que rompem essa malha neural podem resultar em manifestações clínicas bastante peculiares, como a incapacidade de reconhecer rostos ou de perceber os movimentos; a perda de habilidade de ler, mas não a de escrever; a sensação e a crença precisas de que se enxerga o mundo, mesmo quando se está definitivamente cego. Sintomas intrigantes, como os que perfazem a visão cega, a que deu o título dessa coluna.
Essa atividade visual permite que algumas pessoas, cujo o córtex visual primário foi lesionado, vejam sem ter a consciência de estarem enxergando algo. Esses indivíduos andarão por um corredor e desviarão de pequenas obstruções sem se darem conta de que mudaram levemente o percurso. Se questionados dirão que caminharam sem ver nada, pois são cegos. Surpreendentemente acreditarão que percorreram um trajeto desimpedido.
Visão cega, portanto, é a percepção sem a consciência.
A explicação para tal fenômeno não é plenamente conhecida, mas existem algumas teorias. Uma delas é que outra área cerebral se desenvolve para compensar o dano ao córtex visual primário. Esse local pertencente à rede neural designada para a experiência da visão, mas atende a uma demanda: enxergar o movimento. Outra teoria aponta que antes de atingir o córtex visual primário, as informações processadas nos olhos ativam outras partes cerebrais (envolvidas nas reações “rápidas e sujas”), as instintivas ou, se preferir, intuitivas. Mas o mais importante de tudo é saber que a visão cega não é completamente tamponada pela consciência. Em outras palavras a visão cega acontece o tempo todo e influencia nossa vida. Essa função nos permite apanhar um objeto que acabou de escapar de nossas mãos, evitando que se espatife. Entretanto, também marca nossa conduta social. Pois essa função nos faz reconhecer padrões fisionômicos que transparecem confiança ou desejo em dominar.
Como descobriram isso? Cientistas mostraram fotografias de expressões faciais para pessoas cegadas por lesões do córtex visual primário. No ato pediam um palpite. Estaria diante de alguém com raiva, medo ou alegria? O acerto foi superior a 80%, resultado que sugere ser a visão cega um guia para as nossas interações, a impulsionar o contato ou a repulsa. Essa identificação inconsciente de estados emocionais provavelmente reflete um engenho evolutivo, projetado para nos proteger de situações ameaçadoras.
Nosso cérebro não consegue dominar toda a vastidão de informações presentes no mundo, inclusive as que estão bem diante de nossos olhos. Nossas concepções são construídas sobre uma quantia limitada de dados, selecionadas por mecanismos de detecção de saliência.
Como os processos conscientes ou instintivos influenciam essa seleção é uma grande questão sem resposta. Até mesmo porque a consciência é um pequeno elemento de uma grande operação cerebral profunda. Mas esse elemento influencia até mesmo a maquinaria cerebral mais primitiva. Por isso na maioria das vezes escapamos de ser brutais e conseguimos conquistas artísticas, filosóficas e científicas entusiasmantes. Disponíveis à nossa vista ou a outro sentido.
Referências:
Eagleman, David “Incógnito: A vida secreta do cérebro”, Editora: Rocco;
Ajina S, Bridge H. Blindsight and Unconscious Vision: What They Teach Us about the Human Visual System. Neurosci 2017; 23: 529–541.
Ajina S, Pollard M, Bridge H. The Superior Colliculus and Amygdala Support Evaluation of Face Trait in Blindsight [Internet]. Front Neurol 2020; 11Available from: https://www.frontiersin.org/article/10.3389/fneur.2020.00769/full
Georgy L, Lewis JD, Bezgin G, Diano M, Celeghin A, Evans AC, et al. Changes in peri-calcarine cortical thickness in blindsight. Neuropsychologia 2020; 143: 107463.
Kinoshita M, Kato R, Isa K, Kobayashi K, Kobayashi K, Onoe H, et al. Dissecting the circuit for blindsight to reveal the critical role of pulvinar and superior colliculus. Nat Commun 2019; 10: 135.
Koenig L, Ro T. Dissociations of conscious and unconscious perception in TMS-induced blindsight. Neuropsychologia 2019; 128: 215–222.
(*)Luciano Magalhães Melo, médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam. Publicado no jornal Folha de SP, em11.set.2020 às 2h00
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luciano-melo/2020/09/a-visao-cega-e-a-nossa-consciencia.shtml