Por José Joacir dos Santos
Alice era o espelho de uma pessoa lutadora e vitoriosa, que jamais fez mal a ninguém. Mas nunca conheceu o país das maravilhas dos contos de fada.
Formada na Universidade, casada, com bom emprego, parecia viver bem ao lado do marido, naquele sonho do casamento. E essa impressão durou até que um dia viu o lado podre do marido, aquele que ela lutou para não querer ver: alcoolismo, mentiras e traições. Desde o início do casamento, quando o marido já era quem era, ela teimou em ter quatro filhos. Lutava pela saúde e educação de cada um deles praticamente sozinha, numa cidade com longas distâncias, tráfego e demais problemas de uma metrópole. O marido se comportava como adolescente, daquele tipo irresponsável que não queria, jamais, ficar adulto e assumir as responsabilidades de adulto.
Sempre que podia, pessoa próxima da família passava parte das férias na casa dela, as vezes tomando conta dos filhos enquanto ela buscava ardentemente nova empregada doméstica para cuidar de tudo e das crianças – era o padrão daquela região do país. Quando a pessoa tentava mostrar para ela a real situação em que ela vivia, Alice negava e não queria sequer comentar. Já depois do nascimento do primeiro filho era foi alertada para o quadro instável do seu casamento, mas ignorou. Acho que era uma interferência externa. Assim, engravidou pela segunda vez…
Certa vez, perguntaram o porquê de as empregadas domésticas não durarem tanto tempo na casa dela e a resposta foi vaga. Mas, andando pelo mercado próximo de onde eles viviam, a pessoa se encontrou com uma das ex-empregadas e perguntou qual o motivo dela ter abandonado o emprego. De cabeça baixa, a moça, humilde, respondeu: assédio sexual do patrão, com agressão e violência. A moça disse que tentou contar à patroa, mas ela não quis ouvir e a mandou embora, como o fez com outras. Ela queria salvar o que não tinha salvação: o casamento.
Não se sabe ao certo porque a mãe de Alice mandou a menina para uma escola em outra cidade e, por causa disso, a moça foi obrigada a viver na casa de uma tia, de um só quarto. Os filhos do casal, três rapazes e uma moça mais velha que a menina, dividiam o espaço das sala de visita onde as redes eram armadas toda noite. Alice experimentou, na família adotada, a dureza de viver sozinha, trabalhar, estudar e se expor a todo tipo de confronto e humilhação com os primos, inclusive assédio moral e sexual. A grande maioria dos acontecimentos nunca foi dividida ou desabafada, mas, sim, engolida para ninguém saber. Quando concluiu o segundo grau, Alice voltou para a casa da mãe dela, mas por pouco tempo. Fugiu com o primeiro rapaz que lhe estendeu a mão e por sorte não engravidou. Novamente foi encaminhada para outra casa de parentes, onde a situação não era diferente: o apartamento tinha três quartos apertados, divididos pelo casal mais cinco filhos, sendo quatro rapazes.
Em pouco tempo vivendo na nova morada, não se sabe em que circunstâncias Alice foi obrigada a casar com um dos primos, exatamente aquele que se recusava a virar adulto. O casamento poderia ter sido uma porta para a liberdade. Também poderia ter sido a esperança de um novo começo. Mas, não foi assim. O marido já tinha um estilo de vida definido, de bebedeiras, farras e ausências familiares, desde os tempos da adolescência.
No trabalho, Alice era admirada pelos colegas e chefes pela capacidade de armazenar dados. Sabia, decorado, o número do CPF de clientes e empresas. Quando atendia no caixa do banco, a fila se formava. Todos queriam ser atendidos por ela. Na vida real, tinha que se desdobrar entre ser mãe, provedora, trabalhadora e esposa, nunca houve momento para si mesma. Ela não podia contar com a ajuda financeira do marido, que gastava tudo o que tinha nas farras. Os filhos foram crescendo sem que houvesse uma educação familiar voltada para a disciplina, o carinho, o amor, a atenção. Desde muito cedo, os filhos faziam o que queriam fazer. Ela ocupava, também, a função de pai. O marido, por sua vez, usa a casa como um turista usa hotéis.
O marido se comportou, sempre, como uma criança que se negava a crescer e a encarar a vida real, mesmo tendo um filho após outro para lhe chamar a atenção. Mas isso não acontecia. Chegava em casa quase sempre bêbado, de madrugada, e queria ser tratado como um bebê pela mulher, além de comida, roupa limpa etc. A mulher descobriria, 20 anos depois de casada, que o marida tinha quase uma dezena de filhos for a do casamento, com mulheres diversas. Amigos e mulheres chegavam a bater à porta chamando-o para a farra. E ele não resistia. Pouco se importava com as crianças chorando e a mulher reclamando, cansada, exausta. O casal nunca fez amizades, nem com os vizinhos, não só porque o marido proibia. Ele era totalmente antisocial, inconsequente, falava alto, gritava, fazia piadas de mau-gosto com pessoais… Não dava bom dia aos ninguém.
Muita gente tentou alertar Alice de que aquela vida não estava indo no caminho certo, mas na cabeça dela tudo mudaria um dia. Esse dia nunca chegou. Depois de 20 anos de casada, cinco filhos e de descobrir que o marido tinha mais oito filhos, cada um com uma mulher diferente, ela, finalmente, saiu de casa. E embarcou em outro desastre: sem experiência com outros homens, o primeiro que lhe estendeu a mão, ela aceitou. Procurou apoio na família e não o recebeu. A família acreditava que mulher era para viver eternamente na sombra do marido, até que a morte separasse o casal. Na época não existia apoio social para esse tipo de situação e ela morria de vergonha. Mesmo assim, não tinha com quem dividir sua tristeza.
Saiu de casa e achou que, por fim, estava livre, sozinha, pronta para voar e viver a vida que nunca teve. Mas, não foi assim. Sem experiência com homens, acabou conhecendo um homem mais jovem, de muita lábia, sem emprego e sem vontade de ter um. Era um rato de praia, cujo foco eram as mulheres sozinhas que encontrava na praia, com dinheiro para lhe sustentar. Os filhos, adultos, não apoiaram a mãe na separação. Só viriam a olhar a situação com outros olhos quando a mãe já descia de ladeira a baixo, física, emocional e financeiramente, estragon esse causado pelo “novo marido”. O que ajudou a eles a perceberam que cada história tem dois lados foi a descobrar dos outros quase dez irmãos por parte do pai, cada um com uma mulher diferente.
Aos poucos o “novo marido” foi tomando conta da vida dela como se fosse o homem da vida dela, o protetor, o salvador, aquele que era um conto de fadas. Mas, ele tinha prática e agenda própria, era tudo pelo dinheiro dela. Tudo o que fazia era para distanciar Alice dos poucos amigos que ela tinha, dos familiares, dos filhos dela. Ao que tudo indica, ele trabalhava para si mesmo, com o dinheiro de Alice. Até a senha da conta bancária dela era dividida com o novo marido.
Parentes e conhecidos tentaram alertá-la da situação. Mas ela nunca compreendeu. Acreditava que, finalmente, estava fazendo algo de bom por si mesma, escolhendo um homem para si mesma. Na cabeça dela, todo mundo tinha preconceito porque o novo marido dela não tinha estudos nem trabalho e tinha a pele morena.
O casal se mudou de uma cidade para outra porque o marido arrumava encrenca com vizinhos, parentes e quem mais passasse na frente dele, chegando a prejudicar o trabalho da mulher. Sem educação acadêmica alguma, falando o idioma nacional com erros e tropeços, ele atraía para si todo tipo de confusão e de pessoas. Usava seus atrativos físicos para iludir as mulheres e Alice foi mais uma. Fazia Alice pensar que as mulheres o perseguiam e ela acreditava, chegando a brigar com vizinhas por causa dele. O que ela não sabia era que ele também se relacionava com homens com carros novos, motos e dinheiro.
Quando, finalmente, ela pensou em separação, o homem passou na frente, entrou com um processo na justiça e a justiça lhe deu a metade dos bens que ela tinha, alegando que ele não tinha recursos próprios. Mesmo com um processo contra ela, Alice não se preocupou em arranjar um bom advogado. Não se sabe o que ele fazia com o dinheiro, nem o que fez com os imóveis que a justiça lhe deu de mão beijada. Ela acreditava que ele se arrependeria e ele não se arrependeu, claro! E a justiça é cega! Alice perdeu propriedades, dinheiro, amigos e familiares.
Passado algum tempo da separação, o “novo marido” voltou a rodeá-la convencendo-a que tudo tinha sido um erro e que o lugar dele era junto dela, para sempre. O mundo se revoltou, mas ela não escutou ninguém, mais uma vez. Voltou para ele! Como era previsível, em pouco tempo ele resolveu se separar novamente. Entrou na justiça outra vez e pegou mais uma parte dos bens dela. Antes de Alice se aposentar, finalmente, e receber como prêmio a internação em asilo, o “novo marido” dela foi assassinado e a polícia nunca encontrou os assassinos. Dizem que ele comprava coisas e nunca pagava e fazia inimigos por onde passava, inclusive entre pessoas suspeitas de envolvimento com a criminalidade.
Alice se aposentou já com graves sinais de apagão emocional, depressão e profundo processo de negação. Distanciou-se de tudo e de todos, vivendo em torno dos filhos, alguns já casados, mas desfrutando dos recursos financeiros que a mãe tinha. Ela nunca soube dizer não. Bastava uma choradeira e ela abria a mão. A saúde dela se deteriorou. Não se sabe ao certo o que os filhos fizeram e quais os médicos que envolveram no tratamento dela. Os filhos também fizeram de tudo para afastar os parentes diretos dela da situação e tiraram dela a autodeterminação, tornando-a incapaz. Finalmente, ela foi diagnosticada com Alzheimer. Muita gente da família nunca acreditou que aquele diagnostic de Alzheimer estava correto, mas os filhos também não se preocuparam em ter transparência neste assunto. A desculpa de Alzheimer prendeu Alice para sempre. Assim, ela passou a viver na casa de um e na casa de outro, até que veio a sentença: asilo de idosos! Dizem que foram as noras que decidiram asilar a sogra. Assim, ficariam livres dela!
Alice foi internada em uma casa para idosos na mesma cidade onde mora o filho que a interditou judicialmentee. Ele mesmo passou a ser o administrador de todos os bens financeiros da mãe. A alegação principal para a internação da mãe no abrigo foi a de que a doença da mãe estava interferindo na vida do casal – basicamente, desavenças da esposa com a sogra doente, nunca esclarecidos.
Pouco tempo depois da interdição e do internamento, a esposa do filho que a interditou passou a postar na internet fotos de viagens turísticas que, obviamente, não eram compatíveis com o salário total da família dele. Ela mesma não tinha emprego e a sua família de origem era humilde.
E a doença de Alice progrediu ou foi progredida pelos medicamentos, especialmente o esquecimento, na casa de repouso, paga com o dinheiro dela. Embram vivessem na mesma cidade, as visitas ao abrigo de Alice eram raras. É chocante ver uma mulher guerreira, lutadora, com uma capacidade brilhante para memorizar números e contas estar hoje mergulhada no mundo que a Alzheimer reserva para si. Diante disso, é também chocante você não poder fazer nada, além de rezar muito para que o espírito de Alice parta, algum dia, para uma vida melhor.
Nota do editor: o artigo acima é baseados em fatos fictícios. Publicado em 16/01/2025