Por Manuela Cantuaria (*)
Artigo publicado na Folha de S. Paulo de 16/04/2019
Durante uma fase da minha infância, fui viciada em mentir. Sendo bem franca, eu não era exatamente boa nisso. Não aparava as arestas da mentira para que ela fosse crível, mas isso nunca foi um problema. Contra todas as expectativas, minhas performances de bolso faziam brilhar os olhos dos outros. E aquele brilho logo se tornou meu cigarrinho de chocolate.
Minhas colegas da primeira série adoravam em especial o relato sobre um espírito que arrotava no meu ouvido na calada da noite. Até chegar a madrugada em que uma delas acordou com o som de um arroto que fez tremer as janelas. Minha mentira tinha ganhado vida própria. As meninas passaram a dormir de luz acesa e eu mesma virei uma criança insone, pensando em formas de recapturar os monstros que eu havia criado.
A chegada da internet discada lá em casa simplificou bastante a vida. Agora eu podia mentir impunemente. Passava tardes, noites inteiras no chat do UOL. A tela azul do Windows 95 tentou me alertar, em vão, sobre aquele erro fatal. Mentir nunca foi tão fácil. Cair na mentira também. Eu tinha 11 anos, três contas no ICQ e um namoradinho virtual com um total de zero defeitos.
A sensação de furar as nuvens logo se transformou em vertigem. Descobri que meu primeiro amor não era quem eu imaginava, e sim mais um monstro que alguém deixou escapar. Alguém como eu. Minha desilusão não foi amorosa, foi com a mentira. Provei do meu próprio veneno e encontrei nele um antídoto. Minhas lorotas se aposentaram mais cedo que o Temer.
Hoje posso dizer que estive à frente do meu tempo —mesmo que seja mentira. Nossos representantes arrotam absurdos sem qualquer constrangimento. Os comunistas são donos das grandes empresas, o brasileiro só passa fome se quiser, a taxa de desemprego é culpa do IBGE. Estudos comprovam: não precisamos comprovar mais nada.
E assim segue o baile (de máscaras). Meu feed é uma festa de fake news e fanfics, meus heróis morreram de overposting. Os embustes estão em toda parte, do crush do Tinder ao presidente da República. Achei que estivesse vacinada, mas as vacinas também perderam a credibilidade. Sou feliz no Instagram, engajada no Facebook, lacradora no Twitter. Eu prometi nunca mais mentir, e era mentira.Manuela Cantuaria
(*)Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos
Nota do editor deste site – Como a autora do texto acima disse, a mentira pode tomar corpo e vida própria, de forma que a criança que aprende a mentir e passa para a vida adulta mentindo pode construir ao seu redor um mundo à parte, como se fosse único. Por causa do castelo construído em areia, o adulto mentiroso normalmente tem dificuldade de administrar a própria vida e é capaz de se agarrar a outras pessoas como um parasita. Pode entrar em relacionamentos que nunca darão certos pela dificuldade de discernir o que é real ou não. Pode, ainda, canalizar doenças psicossomáticas. Tende a ignorar e a negar tudo o que vier de outras pessoas como conselhos, alertas, orientações etc.