Nos quatro anos que morei na Indonésia fiz amizades com todos aqueles que o destino trouxe para os meus caminhos, inclusive muçulmanos, porque jamais separei as pessoas por religião ou qualquer outra fator social. As pessoas não sabem o que é preconceito social, religioso, cultural e racial no Brasil, mas eu vi bem de perto tudo isso, pintado de sangue humano, na Indonésia. Nesse país, a sociedade é extremamente dividida e lá passei momentos difíceis antes da queda do ditador Suharto, mais ou menos no mesmo período da guerra contra o Limor Leste, ex-colônia portuguesa que lutava pela independência. Milhares morreram do lado mais fraco, indefeso, sozinho contra um gigante.
A população mais perseguida na Indonésia naquela época, não sei se mudou (até junho de 2000), eram aqueles de origem chinesa, cujos antepassados imigraram para fugir da revolução comunista de 1948, na China. A Indonésia não poderia ser o pior lugar para imigrar, já que é um país de mais de 90% da população muçulmana e os imigrantes chineses eram divididos entre católicos, budistas e taoistas. Os dirigentes indonésios sempre falharam na proteção dos imigrantes naquele país e em 1997 quando lá cheguei, podia ver nitidamente essa falta de proteção a cada segundo. Os descendentes de chineses eram visivelmente acuados, calados, sofridos, torturados, vilipendiados. Muitos perderam tudo o que tinham em troca da vida ou se converteram ao islamismo para não morrer. Uma percentagem muito pouca dos descendentes dos chineses é rica e compra a sua libertada a cada novo foco de revolta e agressão de setores muçulmanos. Os indonésios muçulmanos ricos e educados são uma parcela pequena da população. A influência do dinheiro e da ideologia de guerra contra quem não é muçulmano vem de países ricos do Oriente Médio, aqueles que nadam em petróleo e que querem ver o circo pegar fogo longe das suas bem protegidas fronteiras.
Nos finais-de-semana de folga, procurei conhecer e visitar os mercados exclusivos para essas populações desfavorecidas de origem chinesa, onde se encontra de tudo e a preços razoáveis. Através das novas amizades, tive acesso a templos escondidos e a pessoas especiais, honestas, que dedicam suas vidas na ajuda ao próximo, sem distinção de quem quer que seja o próximo. Essas pessoas ajudaram e salvaram a vida de muitos timorenses na época da guerra, anonimamente, da forma que podiam. Nas inúmeras correntes humanitárias de ajuda ao timorenses haviam também muçulmanos esclarecidos, honestos, que com gestos simples salvavam vidas e acalmavam ânimos exaltados entre os seus.
Foi no meio desses acontecimentos, nos quais fui envolvido por obra do destino, que tive uma visão forte, que mexeu comigo por dias. Mal deitei, depois de um dia cansativo, no qual tinha sido contactado pela corrente humanitária anônima para ajudar a abrigar, transportar e redistribuir timorenses fugidos da guerra, que uma imagem imensa de um ser com oito braços, escuro, se projetou do tamanho da parede da minha frente. Meu coração quase saiu pela boca, de medo. Sentei na cama, acendi a luz e comecei a rezar. Nunca tinha visto nada parecido. Mil pensamentos vieram na minha mente, tais como, será que estou fazendo a coisa certa? Se fosse ou não a coisa certa, minha casa já estava cheia de foragidos e nos dias que se seguiram transportei e orientei muitos deles. Mesmo arriscando minha vida, jamais tive problema algum e tudo deu muito certo no meu trabalho humanitário – sentia força e coragem durante todo o tempo.
Não sei ao certo quanto tempo depois daquela visão, fui convidado por um amigo indonésio-chinês para visitar um mercado que nunca tinha ido e que só frequentavam orientais. Quando cheguei ao lugar, uma espécie de shopping de dois andares, senti algo estranho. Como se tivesse sendo puxado por uma corda, tomei a frente do grupo de amigos e segui em certa direção. Eles nada entenderam e eu não dei a mínima. Pediam que esperasse, parasse mas o chamado era maior que o pedido deles e eu fui. Na última loja, uma grande surpresa: lá estava uma imagem igual à do meu sonho. Sob o balcão da loja havia um ser oriental com oito braços e quatro cabeças, em bronze negro. As pessoas da loja me olhavam com espanto e os meus amigos ficaram na porta, calados. Um momento de silêncio e o meu coração queria sair pela boca igual ao dia em que a vi. A imagem estava à venda mas as pessoas não sabiam dizer nada sobre ela. Era muito cara e eu não tinha dinheiro suficiente para comprá-la. Um dos amigos traduziu para o idioma local e ficou acertado que voltaria para comprar a imagem. Pouco tempo depois fui mandado de volta para o Brasil e não pude comprar a imagem, mas deixei o dinheiro para alguém fazer isso e guardar, até que encontrássemos uma forma de trazê-la para o Brasil. De volta a Brasil, pouco tempo depois fui mandado para a Indonésia, mais uma vez, em missão oficial. Lá, a imagem estava me esperando. Foi nessa viagem que o avião quase caiu no Alasca.
Depois de inúmeras pesquisas, descobri que se tratava da imagem de Doumu, a “mãe das profundezas do universo”. Na mitologia chinesa, ela é a deusa que controla não só a relação entre o céu e a terra, mas também o positivo e o negativo, o Yin e o Yang, o vento, a chuva, o trovão, a luz, etc. É a ela que são confiadas as mudanças sociais, a fertilidade, a longevidade, a riqueza. Os três olhos da sua imagem representam a terra e os seres humanos; as quatro cabeças representam as quatro fases lunares e em cada fase estão incluídos o Dragão Verde do Este; o Tigre Branco do Oeste; A Fênix Vermelha do sul; A Cobra-Tartaruga do Norte; os oito braços representam os quatro lados e cantos. O Sol e a Lua, que segura nas mãos simbolizam o céu e a terra; o sino, simboliza o vento; a espada representa o arco-íris; uma espécie de selo tem a ver com o trovão; a lança representa os meteoros; as duas mãos centrais, semelhante ao gesto de Jesus (nas imagens de Coração de Jesus), simboliza, na mitologia chinesa taoísta (antiga), a profundeza do universo, onde moram as estrelas. As mais antigas imagens de Doumu, que se asselha e se confunde com a deusa da compaixão Kuan Yin, datam da dinastia Ming (1368 a 1644).
Na hierarquia celeste, tudo o que a deusa Doumu representa tem suas subdivisões, como por exemplo aqueles que cuidam diretamente dos trovões, da fertilidade, etc. Doumu (pronuncia-se Dô-Mú), muito venerada ainda hoje na China, é a grande mãe. Como já disse, não sabia da sua existência até aquela aparição na minha casa em Jakarta, Indonésia. A sua presença na minha vida e no momento que aquela região do Sudeste Asiático vivia, comprovam que esse ser maravilhoso ainda está comprometido com as mudanças sociais necessárias à evolução humana e a Indonésia precisava passar pela revolução social, com muitas vítimas, que foram aqueles dias da queda do ditador, do processo de democratização, a eleição de uma mulher para presidente da República (contra as crenças e o poder dos grupos muçulmanos, onde a mulher é tida como “um ser inferior”). Por causa dos meus compromissos profissionais, estive muito próximo da mulher que foi eleita presidenta da Indonésia durante sua campanha política. Na época não percebia a intervenção de Doumu, mas agora isto para mim é muito claro. Tenho motivos suficientes para acreditar que estamos aqui e a agora a serviço do universo e isso para mim é uma bênção. Hoje aquela estátua está na minha sala de visitas, no lugar para representação de seres especiais – em outras palavra, um altar. San Francisco, dezembro de 2006. jjoacir@gmail.com
Por José Joacir dos Santos