A minha transferência para os Estados Unidos já deu resultados emocionais positivos. Antes de começar todo o processo, acordei um dia e olhei para a casa com outros olhos querendo guardar a configuração como faço com todas as casas em que moro porque em muitas delas nem olhei para tras quando parti. Dessa vez foi direferente. Senti a necessidade de diminuir a quantidade de pertences e sem mais nem menos enviei e-mail para os amigos anunciado a venda de objetos. Quem compareceu comprou o que quis, inclusive CD de audio de coleções antigas de estimação. Objetos chineses que estavam comigo desde a minha casa em Pequim, os quais jamais pensei em abrir a mão deles, de repente estavam saindo pela porta principal nas mãos de novos donos. Ao meditar, compreendi que estava praticando o desapego, uma dos exercícios evolutivos mais difíceis.
A gente se apega a objetos, coisas, lugares e pessoas. Dependendo dos processos emocionais desde a infância, esse apego pode ser doentio e se tornar mais importante do que a vida propriamente dita. Quando a mesa redonda, em alto relevo, estava para ser levada, me peguei torcendo que ela não passasse na porta para que desfizesse o negócio. De um modo geral, nunca fui tão apegado a objetos e o meu emprego público me ensinou a não me apegar a lugares. Com o tempo aprendi a diferenciar apego de afeto e há pessoas que passaram na minha vida e que nunca mais vou revê-las, pela natureza dos lugares e das circunstâncias, que deixei ir ou partí, mas a memória delas mantenho em meu coração. Com relação as pessoas más, que em nada ou em pouco contribuíram para o meu processo evolutivo, essas eu nem faço esforço de lembrar e as coloco nas orações aos inimigos. Rezo sempre para os inimigos por que os amigos caminham conosco e com eles dividimos a nossa própria luz.
Nas vésperas de completar quatro meses que a mudança saiu da minha casa em Brasilia e aqui não chegou, outro sentimento rola no meu coração. Vivi todo esse tempo com um colchäo no chão e a roupa que trouxe na mala, de forma que a idéia de receber aquele monte de objetos me perturba. Jamais pensei que fosse possível viver só com um copo, uma xícara, uma colher e uma faca, e ter apenas poucas mudas de roupa para revezar! Nessas mudanças todas já passei até dois meses esperando, mas agora o recorde mexeu nas minhas estruturas. Sei que os objetos se acoplam ao nosso todo emocional e a referência que eles trazem nos dá a sensação de que estamos no nosso lugar, na nossa casa, independente do lugar e da casa.
Caminhando pelas ruas de San Francisco, neste lindo dia de sol, e olhando as pessoas que pedem esmolas em um país tão rico como os Estados Unidos, comecei a pensar em devolver a mudança. Para quem, se sou o dono? Por que necessito de tantos livros, de tantos objetos, de tantas lembranças físicas de pessoas e lugares? Por que tenho tantas necessidades? Por que ter uma dúzia de xícaras se uma é o suficiente e dá até para tomar água, leite de soja e suco até sem lavar? A crise aumentou quando lembrei do terremoto que ocorreu três dias atrás, e novas perguntas povoaram a minha mente, assim: e se a casa tivesse desabado com o terremoto? E se você morrer hoje, como o seu espírito vai se separar de tantos objetos?
Quando lembrei que pessoas se matam por coisas materiais, queria parar o povo da rua e conversar sobre este assunto. Entrei então na Macy’s, uma grande loja de departamentos, e caminhei vagarosamente pelas alamedas para observar as pessoas e tentar ouvir o que falavam. De casal discutindo preços a chantagem de criança chorando, eu vi de tudo. Onde será que esse traço cultural do consumismo começou? Por que necessitamos de coisas externas para completar o nosso ser? E quando uma pessoa faz dessa necessidade uma obsessão e uma compulsão?
Ao voltar para casa, não pude deixar de admirar o precioso lixo que é jogado nas ruas de San Francisco todos os dias, depois das 18 horas: televisões, computadores, videos, colchões, aparelhos elétricos de cozinha, roupas e móveis em perfeitas condições de uso. Confesso que várias vezes tive vontade de pegar alguns desses objetos para completar o vazio da minha casa e a necessidade mental de ter coisas ao redor. Qualquer um pode pegar o que desejar porque se isso não acontecer, a pessoa que jogou fora tem que pagar para a prefeitura levar para o lixão. As pessoas até colocam um pequeno cartaz: free! Como não poderei devolver a minha própria mudança, resta esperar para ver o que ela ainda tem a me ensinar. O que será que ainda preciso aprender sobre o desapego? O que será que ainda preciso aprender sobre a simplicidade da vida? Tomara que um dia possa reduzir essa carga da mesma forma que consegui diminuir as bagagens de mão nas viagens de avião. Precisamos, sim, das coisas materiais para nos ajudar a conquistar vitórias espirituais. Mas, é saudável olhar para você mesmo e checar o tamanho da sua bagagem, a qualidade dela, o significado de cada coisa e a que tudo isso está atrelado. Somos todos passageiros do tempo e na maioria dessas viagens só precisamos estar integrados conosco, não com as bagagens. Com certeza, abrirei cada caixa cheio de interrogações. (Todos os direitos reservados).
Por José Joacir dos Santos – jjoacir@gmail.com