POR RITA LISAUSKAS (*)
Que as palavras têm poder, todos sabemos. Então quando alguém diz que uma menina tem sim “que ser tratada como princesa” há várias coisas implícitas. A primeira é a que ela tem sempre que “se comportar”, o que é um um conceito amplo, elástico e customizável, onde se encaixa uma série de coisas desde “sentar direito”, correr devagar, não subir no brinquedo mais alto do parquinho, ser obediente e não argumentar muito quando começa a pensar com a própria cabeça, as princesas são bem comportadas.
As princesas têm que tomar um cuidado todo especial quando se vestem. Esses dias li que uma que ganhou o título ao se casar com um príncipe da Grã-Bretanha não pode usar calças compridas em público em pleno século 21. Saias e vestidos bem rodados são a vestimenta adequada mesmo quando a “princesa” tem apenas 4 anos e, a caminho de uma festa do amiguinho da escola, chora porque queria ir ao buffet infantil de calça de moletom. “Mas todas as suas amiguinhas vão estar de vestido, filha!”
As princesas ganham sempre os mesmos brinquedos – é só procurar por eles observando as caixas rosas na loja. São panelinhas, ferros de passar roupa, fogõezinhos, geladeiras e bonecas, muitas bonecas, geralmente bebezinhos que elas têm que amamentar, colocar para arrotar e trocar a fralda. Não há kits de laboratório, carrinhos, aviões, espaçonaves para as princesas. Todas as princesas nasceram para ser mães e deveriam ficar em casa, lavando, passando e cozinhando em seus castelos, ouvi semana passada.
Já os meninos, esses também sofrem na semiótica do príncipe. Não podem se emocionar, “menino não chora! Você parece uma menininha!, mas podem encher o amiguinho de porrada, “que beleza, esse é macho e sabe se defender!” Nunca, jamais, em tempo algum podem usar a cor rosa e têm também que começar a namorar na infância, muitas, várias meninas ao mesmo tempo, um príncipe que se preza tem de ser “pegador”. “Quantas namoradinhas esse neném já tem?’, ouvimos da família uma vez, quando meu filho só sabia falar gugudadá. Começar a vida sentimental/sexual cedo também é antídoto para “não virar viado”. Ai, ai, a vida de príncipe também não é nada fácil.
Brinquedos dos meninos são todos aqueles que não estão nas tais caixas cor-de-rosa: espadas, carrinhos, caminhões, betoneiras, naves espaciais, Legos, todos os super-heróis da história dos quadrinhos e armas, muitas armas, para matar bandidos, alienígenas, monstros mas não as princesas, viu, desde que elas saibam se comportar.
O resultado de séculos tratando as meninas como princesas-recatadas-do-lar e os meninos como homens-machos-provedores é catastrófico. Elas crescem com o peso de serem as responsáveis pelo lar e pelos filhos e, por isso, na idade adulta acabavam exercendo esse papel, nem sempre por vontade própria. O mercado de trabalho sabe que é sempre ela que vai faltar para levar o filho ao médico e por, isso, faz uma distinção financeira ao empregá-la, quase um favor: mulheres recebem, em média, 52% a menos do que seus colegas homens que dificilmente sairão de uma reunião para buscar os filhos na escolinha. Pesquisa realizada pelo site de empregos Catho ano passado e que ouviu quase 8 mil profissionais comprovou que elas ganham menos que os colegas do sexo oposto em todos os cargos, áreas de atuação e níveis de escolaridade pesquisados.
Já os meninos, os príncipes, que passam a vida sem lavar um copo no mundo da imaginação e também na vida real viram aqueles maridos médios que a gente conhece – eles “até trocam fralda”, desde que não seja de cocô. Segundo pesquisa do IBGE divulgada em 2017, enquanto 91,7% das mulheres cuidam da casa, apenas 76,4% dos homens fazem as tarefas domésticas, que nada mais é do lavar o prato onde comeram ou limpar o banheiro que também usam. Uns príncipes. E as consequências de uma vida sem poder chorar, ser frágil ou de sequer reconhecer que têm sentimentos foram muito bem pontuadas pelo o psicólogo Alexandre Coimbra do Amaral em uma entrevista ao blog em setembro do ano passado: várias gerações de homens que simplesmente não saber lidar com os desafios de uma vida adulta.
Claro que cada um cria o filho do jeito que quiser, então se você acha que sua filha tem que ser “princesa” e seu filho “príncipe” vá em frente. Mas tenha em mente como tal estereótipo é limitante, injusto e castrador. Pode ser ainda pior se o seu filho não se encaixar em nenhuma dessas ideias preconcebidas por ter uma outra percepção de gênero de si mesmo ou uma orientação sexual diferente das tais princesas e os príncipes das histórias infantis – aí será um inferno viver em uma família como a sua e em um país como o nosso, que mais mata LGBT´s no mundo e pensa que essas questões ‘se resolvem’ na porrada. Ou na oração. Atenção, spoiler: é com políticas públicas, segundo a ONU.
Publicado em: https://emais.estadao.com.br/blogs/ser-mae/minha-filha-nao-e-princesa-meu-filho-nao-e-principe/
Nota do editor desta página: Pessoas reagem na vida de acordo com a educação que receberam. Pessoas reprimidas, que foram humilhadas ou castradas por religiões e lavagens cerebrais no meio-ambiente onde cresceram tendem a ser castradoras e repressivas. Refletem o que foi construído no seu emocional ao longo da vida e tendem a repetir esses desequilíbrios. O problema vem à tona e explode socialmente quando uma pessoa com esse perfil chega a posição de chefia, mesmo no setor público, no governo, onde se espera que a pessoa desempenhe suas funções em benefício de todos os cidadãos, independentemente de raça, cor, gênero e religião.