Pessoas pouco espiritualizadas, aquelas que recitam versos da Bíblia como papagaios, têm dificuldade de entender e aceitar mudanças de comportamento da mesma forma que tiveram os que viveram na época física de Jesus. Ouviam e não compreendiam porque estavam presos às velhas e rígidas regras tribais. Muitos eram analfabetos e ignorantes. Daí surgiram as versões truncadas e de difícil entendimento da Bíblia, o que gera uma gama enorme de interpretações atreladas ao nível escolar e de desenvolvimento espiritual-emocional de quem interpreta seus textos hoje.
Nem precisamos falar no alto nível de censura a que foram submetidos os textos sagrados por parte dos “controladores” de plantão, em todas as épocas. O resultado disso é catastrófico e desemboca na perversão dos padrões, na distorção da mensagem original. O famoso Elias mandou matar a população de uma vila inteira porque não acreditavam no deus dele. Hoje é comum você encontrar pessoas querendo que você “aceite Jesus”, o Jesus delas, mesmo que você acredite em Jesus e já tenha sido batizado algum dia. Cristãos brigam por causa da virgindade ou não-virgindade de Maria, como se cada um de nós não precisasse do desvirginamento de alguma Maria para nascer.
Essa hipocrisia dos púlpitos lembra os juízes envolvidos com a criminalidade, os políticos com o contrabando e o nosso vizinho de porta com a pirataria de produtos chineses desqualificados, comprados no Paraguai. Uma cliente conta-me a história de um famoso médico que chega em casa e bate na mulher. Cobre ela de socos e abusos verbais na frente dos três filhos menores. Aos domingos todos vão à igreja, almoçam na churrascaria familiar e depois voltam para casa em silêncio. Dona-de-casa, na segunda-feira ela vai à padaria e não pára de falar do marido famoso que tem. Omite os socos e deixa a dona da padaria triste pelo marido barrigudo que trabalha todos os dias da semana “na escravidão que é lidar com padaria”, e que não bate nela nunca.
Uma ex-vizinha minha repete que “é difícil soltar” a memória das surras que o pai orquestrava na infância dela, embora o pai já tenha falecido há vinte anos e ela seja quase avó. Ela adora contar aqueles terríveis abusos físicos e emocionais aos netos, que guardarão pelo resto da vida essa referência como padrão. Temo que baterão em seus filhos para manter as tradições do avô infeliz e encarem tudo como coisas de família que temos que guardar. Imagino o quanto minha cliente desperdiçou de energia mental para manter tais mórbidas memórias e tento entender porque tanta obstinação a favor de padrões de sofrimento que com certeza continuarão com ela em outras vidas! Quando olho para os seus quase cem quilos percebo o preço que paga para não mudar, para se boicotar. Tenho um amigo gaúcho, vindo de uma família descendente de imigrantes, que guarda todas as roupas de inverno para serem usadas pelos filhos e depois pelos netos como se faz na Europa ainda hoje e em muitos países desenvolvidos, cheios de neuroses de guerra. Ele diz que é um desperdício essa coisa brasileira de consumismo, o que concordo em parte. No dia em que ouvi esse depoimento, ativei a parte que discordo dele e doei meus pares de sapatos extras e fiz uma limpeza no guarda-roupa. Também mudei meu culto aos antepassados. Ao agradecer a todos, peço sempre que alterem seus padrões mentais para que reencarnem aptos a mudar e a contribuir para um mundo mais sadio espiritual, mental, emocional, físico e que não se deixem aprisionar com as ilusões do mundo material e a choradeira das pessoas, mesmo que elas sejam seus protegidos por algum motivo. Precisamos desemperrar o mundo sem sairmos em passeata pelas ruas porque isso se fazia nos anos 60/70, mas depois todo mundo ia pra casa encher a cabeça de drogas e maconha. Se não questionarmos, se não quebrarmos os padrões, se não corrigirmos o curso da vida estaremos mantendo o estabelecido e isso poderá afetar as nossas futuras encarnações. Demoramos tanto a soltar a escravidão negra! Temos ainda dificuldades de soltar padrões vindos da Europa pelos portugueses e da África pelos escravos e ainda olhamos nossos índios como selvagens.
Não querer mudar é não querer exercer a vontade e essa falta de exercício de vontade pode atrofiar filamentos de energia que necessitaremos até para desencaixar o nosso corpo espiritual do corpo frio e morto, no dia da nossa hora. Esse é um dos maiores problemas que enfrenta quem morre sem fé e sem vontade. O corpo espiritual fica preso ao corpo carnal, que apodrece na cova. É um sofrimento horrível sentir a decomposição simplesmente porque não sabemos exercer a vontade para libertamos do cadáver. É, ninguém escapa disso! Vontade não é dizer que “eu queria tanto fazer isso…”. Vontade é a força que gera decisões, aqui e agora, hoje, porque só existe o presente. Para exercermos a vontade é preciso treino. Como começar a dizer não ao explorador? Como dizer não a nossos próprios pensamentos derrotistas? Como sair do comodismo da vidinha besta que a gente vive? Como mudar se não quero estudar, trabalhar, acho difícil fazer uma dieta, não paro de sair com “aquela turma”, e continuo pensando que não mereço viver melhor? Uma amiga mora em um prédio onde um dos moradores é travesti. Tudo seria normal se ele (a) trabalhasse oficialmente e se respeitasse como é. Mas ele(a) toma conta da vida dos vizinhos, quer que os moradores aceitem os seus vasos de planta que atrapalham a circulação pelos corredores, quer que o vizinho do lado deixe de usar incenso porque lhe incomoda o cheio, quer que retirem os quadros das áreas comuns porque não lhe agrada a estética e ainda quer ser sindico (a) para ter uma fonte de renda. A única coisa que falta para essa pessoa é olhar para si mesma nos grandes espelhos apostos na entrada do prédio. Falta-lhe a razão, a percepção de que para exercermos nossa vontade não podemos agredir uma comunidade. O fato de ser travesti não significa nada. A tentativa de invadir a vida das pessoas e de impor sua vontade a uma comunidade torna essa pessoa um prato cheio para estereótipos negativos, os quais retornarão para o seu campo energético e atrapalharão os portais da sua vida.
Aqui a vontade tem efeitos contrários. É a falta de exercitar a vontade que nos faz alimentar os medos como uma criança que está sob o chicote do pai e suplica em lágrimas e palavras carinhosas que o “papaizinho não bata”. A criança não sabe ainda o que é vontade porque está em formação e mesmo apanhando poupa o pai de palavras agressivas porque o respeita como um deus. Todo pai é como o deus para seu filho e é por isso que muitos filhos copiam exatamente as mazelas dos pais porque acreditam que estão se tornando deuses. Se olharmos para a história grega, veremos que os deuses matavam e cometiam todo tipo de atrocidade para manter status. Muitos desses deuses são usados nos consultórios como arquétipos e modelos para espelhamento e assim continuarmos os ciclos humanos de pobreza de espírito. O que dizer de Freud, uma pessoa de difícil convivência que não conseguia manter amigos por muito tempo porque só ficava com ele quem aceitasse o jogo da vida à sua maneira? Ramatis critica, em “Fisiologia da Alma”, o analista que ativa “as imersões do subconsciente” do cliente, e o faz fixar-se nos “recalques de infância”, ou então tenha submetido, ainda, ao “exame de abalizado psiquiatra, que pode tê-lo enquadrado sob a terminologia pitoresca dos tipos esquizotímicos ou ciclotímicos, segundo os estudos dos temperamentos feitos por Kreitchmer”, e a contra-gotas o mantém escravo da terapia sem o auxiliar a desenvolver os exercícios da vontade de soltar as âncoras do passado inútil. Sem irmos muito longe encontramos a igreja, onde tudo é pecado: orgulho, avareza, ciúme, vaidade, inveja, calúnia, ódio, vingança, luxúria, cólera, maledicência, intolerância, hipocrisia ou então de amargura, tristeza, amor-próprio ofendido, fanatismo religioso, ociosidade, prepotência, egoísmo, astúcia, descrença espiritual ou ainda as conseqüências nefastas das paixões ilícitas ou dos vícios perniciosos de “atitudes anti-evangélicas”. Esses “pecados mortais” são passíveis do fogo do inferno. Por outro lado, esses semeadores da culpa não têm coragem e vontade para descer dos seus púlpitos para encorajar ao podre crente a exercer a vontade e alterar esses estados mentais e assim ter uma vida melhor aqui e agora porque também estão presos a padrões mentais seculares e inúteis. Muitas vezes o crente sai do templo carregado de culpa, medo, tortura mental e não foi isso que Jesus planejou.
A pedra que Ele se referiu seria aquela que daria a sombra acolhedora em um dia de Sol, a proteção contra as tempestades do vento e a firmeza para um sono tranqüilo em noites de trovoada – a mensagem foi de amor, não de medo! A lista de pecados reflete pessoas que têm medo de exercer a vontade pura, cheia de beleza, por lhe falta amor. Não existe na face da terra quem não precise mudar porque o próprio universo se renova a cada segundo. Aí você vai dizer: time que está ganhando não se mexe! E eu vou perguntar: ganhando até que ponto? Não existe fórmula de mudança que sirva à coletividade, mas existem caminhos a serem explorados por cada um. Você pode pensar que seu time está perfeito sem notar que os jogadores estão infelizes. Os arquétipos não lidam com Aids, supermercados, impostos, drogas nas escolas, solidão nas grandes cidades. Cada um deve achar seu próprio caminho, com suavidade, persistência, vontade, fé, compaixão porque há janelas abertas nos nossos mundos mentais embora não consigamos perceber sozinhos porque nos fizeram acreditar que somos burros, incapazes, inúteis, ignorantes. Enquanto a religião e a educação familiar não mudam, a gente precisa ter jogo de cintura e buscar alternativas sadias fora delas – porque das doentias estamos fartos.
Como começar? Largando gradativamente as drogas legais ou não; despachando, com classe, as companhias agressivas, violentas, distantes, irresponsáveis e cheias de promessas não cumpridas; soltando-se do peito da mãe que não quer que você cresça para que ela não fique sozinha na velhice; largando esse emprego insalubre que lhe empurra para a cova mais cedo; soltando os medos inúteis que lhe prendem como se o chão fosse cheio de cola; parando de fingir ser a vítima eterna; dizendo não àqueles que lhe exploram e você bem os conhece. A gente finge que é aquela pessoa boazinha, mas esconde monstros no coração. Não existem exploradores sem a permissão dos explorados. Mudar é uma decisão íntima, solitária, resultante da compreensão de que a vida é um momento no tempo. Quem precisa de um companheiro preso ao leite da mãe, surdo, mudo, que sai da cama para o banheiro como se o sexo praticado fosse sujo e imundo ou que lhe empurra no corredor quando a criança chora? Quem precisa do medo da escuridão, de batalhar, de sair à rua e encarar o primeiro emprego? Quem precisa das culpas de Freud e da sua dificuldade de compreender a missão da sexualidade sadia, seja qual for a expressão? Quem precisa do sensualismo exagerado de Apolo, que preferia o diabo a ter que lidar com a vida real? Precisamos, sim, diminuir a importância dos nossos monstros, desclassificá-los, dizimá-los, deixar a garuda virar codorna e o dragão virar libélula — sem rancores, com compaixão. Essas coisas não são como aquelas que a gente pensa que só acontece com os outros.
Entrei no quarto de meu sobrinho e deparei-me com inúmeros monstros de plástico, modernos, agressivos, movidos a pilha, que falam. Ele sabe o nome de todos e trava suas batalhas imaginárias quando está só, imitando a televisão. Parece que a história da Mula-sem-Cabeça da minha infância foi substituída por monstros chineses que não apenas matam mas utilizam alta capacidade tecnológica para isso, as vezes para “salvar” uma princesa mimada e pretensamente indefesa que guarda a sete chaves caprichos mesquinhos, ligados ao sensualismo barato ou a ausência do pai. Os pais do meu sobrinho trabalham oito horas e ele passa quase o dia com a “tia” que não sabe ler. Só uma pergunta vem à minha mente: estava mesmo na hora daquela criança ser trazida ao mundo? Opa, falemos baixinho porque a Igreja diz que camisinha é pecado e Aids não existe. Não posso pretender que as pessoas não tenham filhos, mas posso sugerir que planejem a vida, façam uma agenda detalhada, com dia e hora, para executá- la no momento certo e esse momento é aquele quando a gente olha pra trás e nada nos chama. É preciso checar se as escolhas que fazemos estão em viradas para um caminho limpo, seguro, seco, agradável, iluminado, protegido, onde a gente possa exercer a vontade com a força de quem decide construir uma casa, plantar o jardim, escolher o cachorro de estimação e convidar os vizinhos para um café sem questionamentos a respeito da qualidade da louça a ser servida. Também não tem importância o que pensa o vizinho não convidado vai pensar. A única relevância será a quantidade de risadas a respeito das coisas da vida, dos projetos que não deram certo, dos tropeços tentando acertar, daqueles que tentaram impedir o progresso puxando para baixo quando a gente exercia a livre e espontânea vontade. Para quem filho tem ou cuida da humanidade como opção de vida, resta repassar o recado que Nossa Senhora Abadia um dia me deu: “não tenha medo de nada, siga em frente, olhando para o céu e com os pés bem firmes no chão, mas desbrave a vida sem cordas nas mãos”. jjoacir@gmail.com (este artigo foi publicado em 19/12/2006 at 18:51)
Por José Joacir dos Santos