Por José Joacir dos Santos
Estava na fila para cumprimentar, como parte do trabalho, um político importante. Não tinha dado muito importância porque aqueles tituais de cerimonial são sempre iguais. Sem mais nem menos reconheci a pessoa que deveria cumprimentar. Minhas orelhas ferveram. Puxei discretamente a lista de pessoas e confirmei o nome daquele homem. Sim, era quem eu pensava que era. Imagine você estar de frente ao seu torturador e ter que apertar a mão dele sorridente… Ali, em pé, enquanto a fila andava, minha memória viajou para mais de 20 anos atrás, quando eu era um homem jovem sendo chefiado por aquele senhor. Ele era também jovem, quase da minha idade, mas nas circunstâncias do momento ele era meu superior hierárquico. Era conhecido como arrasador das mulheres desavisadas e andava pelas dependências do trabalho como se houvesse um tapete suspenso só para ele. Pisava, humilhava e perseguia, com muito deboche, todos aqueles sob sua chefia. Parecia haver prazer em olhar para cada um e achar uma coisa para diminuir ou colocar defeito. Ninguém fazia nada que lhe agradasse. Debochava até daqueles que ficassem doentes. Ele pertencia aos novos ricos de Brasília, aqueles que cresceram com a construção da cidade, isto é, sem berço, mas que passou em um concurno famoso e de carreira. Há empregos que adoram esse tipo de pessoa e era exatamente essa a situação: rapidamente ele foi promovido e colocado nos melhores postos da sua careira.
Fui transferido e segui o meu caminho, carregando, ainda, as marcas dos estragos emocionais que uma chefia autoritária, injusta e abusiva pode proporcionar a qualquer pessoa. Naquela época não existiam leis que punissem os chefes abusivos e o órgão que trabalhava pouco se importava com as categorias mais humildes. Mas o destino nos recolocou frente-a-frente outra vez, cada um de nós em posições diferentes, distintas, sendo ele, mais uma vez, a autoridade. Ao apertar a sua mão, ele me olhou e perguntou: já nos conhecemos? Respondi: não, senhor. A fila andou e acredito que a memória daquele homem passou exatamente pelo crivo do tempo, com um acréscimo: só quem é pisado lembra exatamente da dor. Por que eu disse não? Porque naquele momento toda a carga de ódeo e raiva daquele homem, que nem lembrava que guardava comigo, foi embora pelo ar, em duas palavras. Para sempre os nossos espíritos estão separados pela falta de reconhecimento da parte dele. A minha imagem não está firme no seu pensamento, na sua memória celular e o que eu guardava soltei de uma vez só. Basta um lado soltar para que o vínculo seja desfeito.
O perdão nem sempre perdoa ou limpa completamente a memória celular porque há partes de nós mesmos que não temos controle absoluto sobre isso. Naquele momento também tive a comprovação do que afirma Réne de Nebesky, em seu livro “Oráculos e Demônios do Tibet”: o ódio chega a um ponto em que enche os espaços do portador e se reflete na forma fisica dele, deformando a pele, o rosto, as expressões e até a fala. Tanto o ódio que a pessoa carrega consigo dela mesma como as maldades que faz com as pessoas contribui para a deformação da forma física. Aquele homem, há mais de 20 anos atrás, era bonitão e certamente pensava que a juventude era para sempre. Quem não tinha o seu modelo físico também era vítima dos seus deboches e achados. Hoje, seu rosto é exatamente como as máscaras dos demônios. Se não fosse o nome na lista que tinha no meu bolso, eu não teria certeza de que se tratava da mesma pessoa que meu sexto sentido denunciou imediatamente ao encontrar, ao estar no mesmo ambiente físico. Sim, os nossos sentidos falam claramente e as antenas trabalham quando estamos no mesmo ambiente físico de pessoas do bem ou do mal.
A lição desse reencontro foi grande e felizmente aprendemos todos os dias. A maldade realmente modifica as expressões faciais, a pele, o brilho dos olhos, a cor da pele. E o escritor pesquisador Walter Semkiw diz, em seu livro “A Origem da Alma”, de cunho científico, que carregamos para sempre esses impressões físicas para as futuras vidas. Daí porque as vezes as pessoa vêm almas horripilantes e deformadas, como as almas daqueles que morrem viciados em maconha, cocaína ou qualquer outra droga. Hoje eu tenho cabelos brancos e o universo conseguiu privilegiar o meu ser mantendo apenas as marcas do envelhecimento. Se eu tivesse asas já teria voado por ai há muito tempo, mas posso dizer que tenho disciplina e isso parece ser um trunfo nesta vida. Ninguém agrada a todo mundo nem tem a obrigação de amar e ser amado por todos. A melhor posição, como diz Chico Xavier, é: ainda bem que não fui eu quem fez tudo aquilo. Nova Delhi, India, 2011 jjoacir@gmail.com