Por José Joacir dos Santos (*)
Lili é o nome que escolhi para o personagem, cujos demais dados aqui estão modificados. Desde criança tem cabelos ondulados e quando toma sol ficam aloirados. Tem olhos esverdeados, um corpo no lugar certo, uma mulher pela qual qualquer homem quebra o pescoço. Apesar disso, ela nunca descobriu o quanto é linda! Chegou ao consultório com duas muletas e o pé engessado. Quando levanta a cabeça o olhar é perdido. Passa a maior parte do tempo olhando para o chão. Tive que ver o boletim da faculdade porque quando ela fala você acha que tudo é mentira – e ela confessa que nunca teve muita credibilidade, nem dentro de casa. É só você olhar para ela e a palavra mentira vem na cabeça. Claro que é a casa dela que esconde as sombras de tanta tristeza em um rosto tão angelical. Ela é a terceira filha e perdeu o trono para o irmão, queridinho do pai.
Os pais da menina são daqueles que delegam a educação dos filhos a professores e escolas. Isto é, não assumem nada. Embora tenha fama na família de boa cozinheira, a mãe de Lili jamais ensinou aos filhos a fazer bolo de caixinha. Não se sabe a história emocional do pai, mas o certo é que ele ignorou as três filhas e só assumiu a paternidade a partir do nascimento do menino e a ele dedicou tudo o que é – famoso advogado. Ele sufoca tanto o menino que o garoto, aos 18 anos, já andava como ele, pensava como ele, comportava-se como ele e já acredita que suas irmãs eram “idiotas”. No dia da minha formatura, diz Lili, meu pai foi pescar e minha mãe fazia auditoria no Sul. Ela tenta copiar o comportamento mal resolvido e machista do marido e às vezes faz sucesso. Não tem vontade própria e aparentemente não compreende o seu próprio papel, de mãe, na família. Só as irmãs compareceram à formatura. “Éramos como três pintinhos órfãos molhados na chuva…”. Muito desta história não pode ser aqui contada, mas Lili disse-me que queria ver o texto publicado para se distanciar cada vez mais do passado que tanto suor lhe deu para construir o presente.
Lili conta que no dia em que menstruou pela primeira vez estava sozinha em casa com a mãe. Ao chamar a mãe para mostrar o ocorrido, a mãe a mandou ir ao banheiro do casal porque “lá tem absorvente”. Assim foi sempre: com os boletins escolares, a formatura em economia, os desapontamentos com namorados. Ninguém para dividir suas emoções porque as irmãs tinham o mesmo comportamento individual – são sozinhas. Lili já quebrou um dedo, machucou os dois pés, teve um corte profundo na testa, desmaiou na escola, caiu de bicicleta, queimou as pontas dos cabelos no fogão de casa, perdeu a bolsa com tudo dentro, bateu o carro um dia depois de tirar a carteira e mesmo assim não conseguiu chamar a atenção da família positivamente. Ao contrário, sempre levou sermões, castigos e até um tapa do pai. Os pais acham que a rigidez exagerada e fria em educação serve para alguma coisa. Lili chora, em cada sessão, como se fosse derreter completamente.
Não precisa ir muito fundo para saber que Lili se apaixona facilmente por qualquer homem, se decepciona da mesma forma quando cai a máscara das suas fantasias e na maioria dos casos não sabe como acabar e sair da relação – ela diz que sempre espera que o rapaz acabe. Isso já lhe custou caro! Apaixonou-se perdidamente por um rapaz viciado que a obrigava a comprar a maconha dele, botar gasolina no carro e até a comprar “presentes” que ele escolhia. Aquele tapa que levou do pai quando bateu o carro? Quem estava no volante era o namorado, cheio de maconha! Até pensei em ir para outro país procurar um namorado porque nesta cidade estava e parece que ainda está havendo uma crise entre os rapazes. Eles parecem gostar mais dos vícios… Numa das sessões pedi a minha cliente que listasse o nome de dez amigos, puramente amigos, sem interesse algum, até da faculdade, e ela confessou ter dificuldade de fazer amizades com homens porque “qualquer gesto brusco parece com meu pai”. O que há de errado com o pai? Nada! Ele é completamente dedicado a sua carreira de advogado. “Traumatizado” com o fato de só ter filhas, parece que ele estava apenas reproduzindo uma programação emocional errada herdada dos pais com relação a homem e mulher, herdeiros, etc. Até a separação, “fracassou como pai em todos os momentos da nossa vida”. A mãe? É funcionária pública de um importante órgão federal e até viaja pelo serviço, de tão boa que é no que faz profissionalmente. Mas, apesar de ter tido quatro filhos, até hoje não se lembra do seu papel principal na história deles. Estaria ela reproduzindo o comportamento reprimido das mulheres da família dela?
Para os olhos alheios, a família da Lili é perfeita, assim como a sua vida. Dá pra fazer uma lista de coisas boas dos seus pais? Ah, sim, nunca faltou nada em casa; quando peço dinheiro eles dão… Que mais? Lili chora. Numa das sessões a cliente trouxe uma folha de papel amarelado, com um poema que escreveu quando tinha 14 anos, após ouvir o pai contar para um amigo, enquanto fazia um churrasco, o quanto lhe entristecia o fato de ter três filhas mulheres. Na verdade ele substituiu a palavra “mulheres” por um palavrão comum na linguagem de homens naqueles bares de esquina… Lili estava dentro do banheiro, atrás da churrasqueira, e o pai não sabia. Ela acredita que todo o seu sofrimento começou ali. “Queria morrer”. As irmãs de Lili não percebem nada disso: elas acham que a vida é assim! Na psicologia é fácil definir esse comportamento: negação! Todas tinham problemas estomacais de origem emocional. Isto é, você sabe que tem um problema e finge não tê-lo. Todos os dedos apontam para ele e você diz: não existe! O mundo inteiro diz que vê e você diz que é pura mentira. Às vezes basta uma palavra para quase destruir uma vida, especialmente se é pronunciada por um ente querido na hora errada, com raiva, por ignorância ou por não ter nascido com a vocação de ser pai ou mãe. Quem faz isso repete a cena sem perceber e a ferida vira chaga em quem escuta. Aí, o amor se transforma em ódio, carinho em rebeldia e quando algo trágico acontece os pais dizem: onde foi que erramos?
Além de bonita, a minha cliente é muito inteligente. Na hora de puxar pra fora as emoções ela reagia racionalmente, imitando o comportamento reprimido dos pais intelectuais. É como se falasse de alguém que não era ela. Um dia a peguei pelo pé: marquei a consulta na hora do jantar da casa dela. Levei para o consultório comida, pratos, talheres, toalha vermelha para a mesa, flores e taças para água. Lili ficou surpresa, mas reagiu positivamente. Pedi que minha cliente arrumasse a mesa para o jantar como se ele estivesse esperando uma pessoa muito importante. Acanhada, ela arrumou a mesa e não colocou a toalha nem as flores – não sei o que se passou na cabeça dela naquele momento. Quando ela olhou pra mim e disse que estava pronta, incorporei o pai dela e comecei a reclamar da mesa, do jantar, da comida, como se ela tivesse feito a comida – esse era a pessoa importante. Usei as mesmas palavras que ela disse serem usadas pelo pai, inclusive aquela frase de bar de esquina com relação às três filhas. Minha cliente disparou a chorar copiosamente, escondendo o rosto com as mãos. Cheguei bem perto dela (que era mais alta que eu) e gritei: sua vadia, você merece um tapa na cara! (a mesma frase que o pai dela disse quando o namorado bateu o carro e ela mentiu). Neste momento, minha cliente me empurrou para trás e vomitou tudo o que ela sempre quis dizer ao pai e jamais teve força ou coragem. Os olhos dela faiscavam e eu estava certo de que ela estava vendo o pai dela em mim. Cinco anos depois, Lili é mãe de um casal de filhos e conheceu o marido em um curso de Reiki, que fez logo depois dessa técnica de psicodrama e muito floral.
A mãe de Lili luta hoje contra câncer na garganta, o qual lhe afastou do trabalho. O pai de Lili foi preso fazendo sexo com um travesti no estacionamento de um tribunal importante e o caso foi abafado por amigos na polícia. Expulso de casa, foi embora para o Sul. Das duas irmãs, uma virou sindicalista profissional, desses que só sabem convocar greves, nunca negociações. É solteira e nunca apresenta os namorados. Mora com a mãe, com quem “discute todos os dias” e não quer saber de terapia. A outra é professora e a cada semestre namora um aluno da classe, sempre mais novo que ela – e todos tiram proveito dela. Apesar de ter um bom emprego, não tem coragem para sair de casa porque diz cuidar da mãe. O irmão casou com uma moça evangélica, grávida. Lili voltou a estudar e vai ser pediatra, a mesma profissão do marido. Jose Joacir dos Santos é psicossomatista jjoacir@gmail.com