Por José Joacir dos Santos, jornalista e psicoterapeuta
Franz Stangl, ex-chefe de dois campos de extermínio na Polônia, não só se tornou funcionário da montadora em São Bernardo do Campo, como também montou esquema de espionagem na fábrica em colaboração com o regime militar. Ex-comandante dos campos de extermínio de Treblinka e Sobibór na Polônia, Franz Paul Stangl trabalhou por oito anos na Volkswagen do Brasil, entre 1959 e 1967. Ele foi responsável por montar um setor de monitoramento e vigilância na unidade de São Bernardo do Campo para espionar funcionários durante a ditadura militar, como revelou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2014. Apesar de ser procurado internacionalmente, Stangl nem sequer alterou seu nome ao chegar ao Brasil, em 1951.
O caso foi relembrado por uma força-tarefa investigativa das emissoras alemãs NDR e SWR e o jornal Süddeutsche Zeitung em reportagem publicada nesta quarta-feira (26/07). O texto diz que a Volkswagen chegou a recomendar um advogado a Stangl, depois de ele ter sido preso em São Paulo, em 1967. Stangl chegou com a família ao Brasil em 1951 depois de fugir de uma prisão e morar por um tempo na Síria. Ele viveu no país por 16 anos, antes de ser extraditado para a Alemanha. Nascido em 1908 em Altmünster, na Áustria, Stangl fez parte do Aktion T4, o programa de eutanásia nazista para o extermínio de pessoas com deficiência física, e foi promovido a comandante dos dois campos de extermínio na Polônia.
No Brasil, o criminoso nazista trabalhou em empresas têxteis até ser contratado pela Volks em 1959. A estrutura montada por Stangl – justamente para espionar funcionários – era complexa e contava com dezenas de policiais e membros das Forças Armadas. Ainda hoje, porém, a empresa argumenta que ninguém sabia sobre seu passado. “Tudo indica que eles não sabiam”, disse o advogado da Volkswagen no Brasil, Rogério Varga, à equipe de repórteres alemães.
Stangl foi preso em São Paulo em 28 de fevereiro de 1967 graças a Simon Wiesenthal, conhecido como o “caçador de nazistas”. Num caso amplamente noticiado pela imprensa brasileira, o ex-comandante nazista foi preso por agentes do Departamento de Ordem e Política Social (Dops) e extraditado para a Alemanha. O ex-presidente do Grupo Volkswagen Carl Hahn, que na época ocupava um cargo no conselho fiscal da montadora no Brasil, diz que não havia informações sobre a história de Stangl. “Nós não sabíamos de cor os nomes dos comandantes dos campos de concentração”, argumenta. “Que as pessoas vindas da Alemanha fossem registradas lá [na montadora] era algo muito normal.”
Recomendação de advogado
Logo depois da prisão, o então chefe da Volkswagen do Brasil. Friedrich Wilhelm Schultz-Wenk, que tinha sido membro do partido nazista, enviou uma carta à sede da montadora em Wolfsburg para justificar por que a empresa não sabia sobre o passado de Stangl. Ele disse que a legislação brasileira proibia a coleta de informações sobre os trabalhadores. “A VW no Brasil é indiferente à qual religião alguém pertence”, escreveu. Mas no caso de Stangl, ressalta a reportagem, não se tratava de crença, mas de crimes de guerra.
A reportagem revela ainda que, depois de ter sido preso, a montadora recomendou um advogado ao ex-comandante nazista. Em dezembro de 1970, ele foi condenado pelo Tribunal Distrital de Düsseldorf à prisão perpétua pelo assassinato de 400 mil pessoas nos dois campos de extermínio. Segundo a investigação, Wiesenthal, o “caçador de nazistas”, escreveu ao ex-parlamentar Walther Leisler-Kiep dizendo que a mulher de Stangl conversou com membros da Volkswagen e que a companhia recomendou um advogado para o ex-comandante. A comunidade judaica reclamou sobre a ajuda oferecida a Stangl no Consulado Alemão em São Paulo e pediu a intervenção do embaixador alemão no Brasil, como mostram documentos do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha. Não está claro se o consulado interveio no caso. Stangl foi representado por outro advogado, que recebeu os honorários da Áustria. Depois de ser extraditado, Stangl foi levado a julgamento na Alemanha. Antes de a sentença transitar em julgado, ele morreu de infarto na prisão, em 28 de junho de 1971.
Volkswagen vai indenizar vítimas da ditadura no Brasil
A montadora alemã Volkswagen vai indenizar ex-funcionários de sua filial brasileira que foram afetados pela colaboração sistemática da empresa com a ditadura militar no Brasil. A informação foi divulgada pela imprensa alemã nesta quarta-feira (23/09/2020). Segundo o jornal Süddeutsche Zeitung e as emissoras estatais NDR e SWR, o acordo de compensação será assinado pela companhia nesta quinta-feira em São Paulo. Os veículos disseram que a subsidiária brasileira da VW deverá pagar cerca de R$ 36 milhões em indenizações individuais e coletivas. Grande parte do valor irá para associações de vítimas formadas por ex-funcionários e seus familiares. Ao todo, mais de 60 pessoas serão beneficiadas.
A compensação está relacionada a uma ação movida há cinco anos contra a empresa em nome de ex-empregados que trabalharam na fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo durante a ditadura militar. Com o acordo indenizatório, a companhia evita uma disputa judicial. O historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, que foi contratado pela empresa para apurar a colaboração da VW com a ditadura brasileira e elaborou um relatório independente sobre o caso, afirmou que o acordo desta quinta-feira será histórico.
“Será a primeira vez que uma companhia alemã aceita sua responsabilidade por violações de direitos humanos contra seus próprios funcionários por eventos que ocorreram após o fim do nacional-socialismo”, disse o especialista aos veículos alemães.
Em sua reportagem, o Süddeutsche Zeitung aponta que a decisão é “um sinal importante, justamente porque o presidente populista de direita Jair Bolsonaro já glorificou a ditadura militar da época”. “Para os trabalhadores da fábrica, significa uma justiça pela qual eles tiveram que esperar por décadas”, completou o jornal.
A colaboração da Volks com a ditadura
Em 2017, uma investigação realizada pelo Ministério Público Federal (MPF) confirmou que a montadora alemã colaborou de maneira sistemática e ativa com o regime que governou o Brasil de 1964 a 1985. Um relatório de 406 páginas apontou que a filial brasileira da VW espionou os próprios funcionários com interesse de descobrir opiniões políticas, e documentou a espionagem por escrito. Essa documentação era enviada ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops).
“A Volks teve um papel ativo. A montadora não foi obrigada a isso. Eles fizeram parte porque queriam”, escreveu Guaracy Mingardi, perito que assinou o relatório do MPF. O documento revelou ainda que o departamento de segurança da montadora permitiu a prisão de funcionários dentro de suas fábricas, mesmo sem mandados. Após a detenção, funcionários que eram considerados opositores ao regime foram torturados durante meses.
O texto acusou a VW de ter observado os funcionários antes das prisões. “É improvável que a Volkswagen não tenha participado ativamente dessas investigações”, destaca o texto, acrescentando que o departamento de segurança da montadora teve um papel central na atividade repressora. Vários ex-soldados foram contratados pela empresa para trabalhar como seguranças. Segundo o relatório do MPF, logo após o golpe de 1964 a filial brasileira da Volks compartilhava da ideologia do regime e, a partir do fim da década de 1970, tinha interesses comerciais, ao desejar utilizar o “maquinário repressivo do Estado” para impedir greves. O documento não abordou quão profundo seria o conhecimento da sede da montadora, em Wolfsburg, na Alemanha, sobre as atividades da filial brasileira. Porém, uma análise extensa de documentações, realizada por Kopper, o historiador contratado pela Volks, sugeriu que a sede tomou conhecimento desses atos o mais tardar em 1979.
O relatório do investigador independente foi divulgado pela Volkswagen em dezembro de 2017, detalhando a colaboração da filial brasileira com o aparato repressivo do regime militar. O documento de 114 páginas apontou que a montadora foi “irrestritamente leal” aos militares e que seu próprio aparato de segurança patrimonial facilitou a identificação e prisão de funcionários “subversivos” – sendo ao menos um deles torturado em uma unidade da empresa. A filial também demitiu trabalhadores envolvidos com sindicatos e alimentou e compartilhou com outras empresas “listas negras” com nomes de funcionários.
O texto, no entanto, diz que não foram encontradas provas de uma colaboração institucionalizada da montadora com a repressão estatal. De acordo com o documento, os membros da segurança patrimonial – vários militares da reserva – agiram por iniciativa própria ao espionar e entregar funcionários ao regime. Não há documentos que indiquem que a diretoria no Brasil deu ordens nesse sentido. Investigações apontaram que montadora alemã colaborou de maneira sistemática e ativa com o regime militar brasileiro. Agora, ex-funcionários perseguidos deverão receber R$ 36 milhões em indenizações, diz imprensa alemã.
Extraído do jornal alemão DW, em 25/09/2020.
https://www.dw.com/pt-br/volkswagen-vai-indenizar-v%C3%ADtimas-da-ditadura-no-brasil/a-55034209
https://www.dw.com/pt-br/um-comandante-nazista-na-volkswagen-do-brasil/a-39853635