Xamanismo: O caminho tibetano da cura holística
Uma das coisas que mais me chamou atenção nas minhas primeiras visitas aos templos tibetanos e taoístas na China, Hong Kong e Tailândia foram as armas exibidas por divindades espiritualistas (tanto do budismo quanto do taoísmo). Máscaras e expressões faciais não ficavam por menos e o desavisado ocidental, acostumado com a cara bonita dos santos de olhos azuis, pode se assustar e imediatamente fazer uma ligação daquelas representações com “demônios” do catolicismo e das seitas evangélicas.
Para o tibetano e grande parte dos orientais acostumados com as tradições milenares, tais entidades têm poder e são elas que atravessam as dimensões do tempo, do espaço e da hierarquia dos mundos com uma só finalidade: a bondade. A espada de São Miguel, por exemplo, não seria uma espada de metal, mas de luz intensa, capaz de desfazer a energia contrária à luz e à evolução. Nas religiões de matriz africana também seria a mesma coisa porque no mundo espiritual não há a materialização de metais terrenos.
São muitos os objetos que aparecem como “armas”. Quando a mestra ascensionada Kuan Yin necessita ir aos infernos (umbrais) e nesse trajeto precisa enfrentar os “donos” dos lugares, armados, ela não se faz de rogada e materializa artefatos semelhantes à natureza densa daqueles que encontra para dar o tom de igualdade de condições e distrair tais criaturas prostradas nas portas e portais do tempo. Ela também é Canon, Cherezig, Pu Sa, Avalokitesvara e veste-se de acordo com a missão de luz que precisa empreender. Se uma pessoa necessita lidar com abelhas e mosquitos se veste adequadamente, não é mesmo? Na pandemia da Covid-19, a máscara barra o vírus porque foi criado para o mundo material.
Sacrifício de animais
Para o xamanismo tibetano, a espada é um dos instrumentos de trabalho espiritual e essa maneira de ver foi incorporada às sérias escolas de artes-marciais orientais. O iniciado recebe esse presente de seu mestre para ser utilizado nos momentos de transe e de luta contra o portador do mal. O instrumento transfigura-se e aparece aos olhos de todos os que forem de outros mundos, especialmente os anjos inconformados e presos ao ódio chamados demônios. Essa tradição é registrada pelos estudiosos tibetanos e siberianos, e o pesquisador René de Nebesky Wojkowitz diz, em seu livro “Oracles and Demons of Tibet” (Oráculos e demônios do Tibete), que muitas das tradições xamânicas tibetanas sobreviventes são pré-budistas e semelhantes às práticas da gelada Sibéria (Rússia), apesar das distâncias geográficas, caracterizando, assim, a raiz xamânica humana.
Ao contrário de algumas das tradições xamânicas latino-americanas, nas quais são utilizados elementos alucinógenos como haxixe (mascado ou fumado, ayahuasca), fumo, álcool e sacrifício de animais nos processos de transe de médiuns e xamãs, nas tradições tibetanas isso é completamente proibido. Quem utiliza aqueles elementos são tidos como impostores, passíveis de punição se a comunidade descobre. O máximo que é permitido ao médium ou xamã tibetano (e siberiano) é a queimação de folhas de Juniper, uma árvore medicinal também utilizada nos funerais na Índia em forma de óleo essencial nas cerimônias de purificação.
Música como auxiliar do transe
O principal elemento utilizado para induzir ao transe é a música. A música é tida como auxiliar no processo de incorporação dos espíritos, ajuda na utilização do corpo do médium/xamã e na expressão verbal. Há uma rica gama de instrumentos utilizados em cerimônias sagradas e em todas elas há o processo de incorporação de espíritos. Algumas orações são cantadas em ritmo acelerado para facilitar e dar o tom do processo de incorporação e manifestação verbal da entidade e facilitar a transição entre uma sintonia e outra (uma faixa vibratória e outra, uma dimensão ou frequência e outra).
Depois que a entidade assume totalmente o corpo do xamã, passa e fazer ajustes de cura no corpo do próprio médium, daí o perigo de incorporar espíritos pouco elevados, aqueles que querem coisas do mundo físico como bebida, comida, sexo etc. Os passos são os seguintes: o espírito a ser incorporado é invocado, chamado. Acredita-se que ao chamar ele imediatamente apresenta-se, daí o fato de os tibetanos não pronunciarem nomes de demônios e de entidades conhecidamente perturbadoras e atrasadas. Com o ritmo da música há a incorporação. A entidade dança até ajustar-se ao corpo do médium. Os lábios enchem-se de espuma (expulsão das impurezas do corpo do médium). O rosto contorce-se e muda de figura. O corpo do xamã é dominado e ele acalma. A entidade então fala, dá instruções, ensina e canta orações e mantras. Neste momento a entidade pode exibir poderes de materialização de objetos, cura de doenças, executar cirurgias, e muitas outras habilidades que a comunidade sabe que o xamã em sã consciência jamais poderia executar ou dizer ou explicar ou cantar. No mundo espiritual, os tons musicais são uma língua franca.
Em algumas circunstâncias, os espíritos fazem questão de provar a idoneidade do xamã. Para isso a entidade utiliza-se de espada ou de qualquer arma cortante de uso pessoal do xamã e faz com que o médium se corte sem sentir dor alguma. Esses “cortes” também servem para purificar o corpo do médium dos venenos que incomodam a energia do espírito.
Tive a oportunidade de participar de algumas dessas cerimônias, na qual a entidade retaliou a língua do xamã e com o sangue que jorrava escreveu para mim um mantra, com as devidas recomendações. A entidade falava como se a língua do médium não estivesse cortada e ainda por cima em um idioma antigo tibetano, traduzido em duas outras línguas até chegar ao inglês que era a minha língua naquele momento. Ainda com a língua jorrando bastante sangue, a entidade deu passagem a uma cerimônia de iniciação não traduzida porque ninguém sabia em que língua estava sendo falada. Segurando um facho de incensos com as duas mãos, a entidade passou o fogo rente ao meu corpo, do meu chakra coronário até os pés, sem que o fogo me queimasse. Depois, literalmente cuspiu todo o sangue sobre meu rosto e em segundos o sangue evaporou-se totalmente e eu entrei em transe, que durou até o final da cerimônia de iniciação.
Apesar da estranha língua falada, no centro do meu cérebro havia completo entendimento de tudo que era dito, como se fosse um código que só o iniciado pudesse saber. Ao terminar a cerimônia e as pessoas esvaziarem o templo, fui chamado pelo monge-xamã para uma conversa amistosa depois que lhe foi dito que eu era o único estrangeiro no local. Em um bom inglês pudemos conversar e não havia sinal algum dos cortes na língua daquele homem-santo. Falamos de muitas coisas, não tocamos no assunto da cerimônia e ele pode utilizar a vidência para me aconselhar em detalhes da minha vida, especialmente na capacidade de juntar culturas orientais a ocidentais.
Os tibetanos atribuem a uma “seleção divina” a escolha de um xamã. Nem todos os médiuns com alta capacidade de manifestação são escolhidos para a medicina xamânica, a não ser na região não tenha muita escolha e nesse caso a espiritualidade escolhe quem se aproxima do ideal e da necessidade do momento. Como não há outra maneira de se exercer a atividade xamânica sem a submissão do candidato a um processo iniciático e presencial, especialmente porque ele vai ser aquele que atende terapeuticamente à comunidade, muitos candidatos são preteridos pelas “imperfeições da psiquê”, embora manifestem habilidades mediúnicas importantes. A transmissão requer do médium certo conhecimento. Quando não há, a espiritualidade pode utilizar os canais energéticos do médium para ir mais além das habilidades do médium.
Acredita-se que quem sofreu um trauma e não curou carrega essa memória nas reencarnações seguintes, a qual se manifesta em forma de deficiência física ou mental, dificultando as transmissões espirituais. Ainda hoje no Tibete e em muitas regiões da Sibéria e do Nepal, o xamã é o único “médico” que a comunidade conhece e respeita. Por isso que o xamã é também chamado de “homem da medicina e da cura”. É ele quem entende de plantas medicinais, das dificuldades da mente, do corpo e da alma porque o ser humano é tido como um todo inseparável, holístico, sagrado. Os conselhos de iniciação viajam no tempo e no espaço das vidas do candidato e examinam todos os aspectos do seu ser sob a ótica da missão de cura. Sabe-se que há, sempre, entre os candidatos aquelas raposas em pele de carneiro, que são excluídas. Não existem iniciações à distância. Todas exigem um ritual presencial.
Ninguém subestima a capacidade dos demônios, tão poderosos quanto os anjos do bem. A única diferença entre ambos é o destino das intenções de quem invoca. A lâmpada que ilumina também pode dar choques. Talvez seja essa a única porta-divisória. Se um demônio desiste de aliciar uma pessoa é simplesmente porque ouve a real intenção do ser eterno daquela pessoa. Para que aliciar um químico que fortemente não quer e nem tem habilidade para a química da cura? Veja meu livro “Abuso Sexual Espiritual é Real”.
Depois de selecionado e submetido ao processo iniciático, o xamã passa por um período de treinamento nos rituais da nova profissão em regime de semi ou completo internato em um mosteiro, onde ele ou ela vai primeiro curar todas as suas pendências físicas, emocionais e espirituais antes de ser iniciado e atuar na comunidade. Não se aceita um candidato a xamã pelo simples fato desse candidato ser filho de um famoso xamã. Há xamãs celibatários, mas essa escolha é pessoal. Não há distinção de gênero para candidato a xamã. Muito pelo contrário, aquele que transita seu gênero entre masculino e feminino pode alcançar mais além de quem está preso a um lado da energia. O que conta são as qualificações dentro dos padrões holísticos milenares do espírito. As genitálias não acompanham o espírito, só a força da energia do indivíduo.
Muitos dos xamãs já são escolhidos na infância. Alguns são anunciados como Jesus foi. Em outros, as habilidades se manifestam na maturidade sexual. Há os casos de herança genética do sangue de nascimento. Isto é, a família já vem preparada desde a encarnação com uma genética específica e reencarna em família com as mesmas habilidades genéticas do sangue.
Esse mesmo processo acontece com os “demônios”. Os tibetanos acreditam que muitos demônios escolhem incorporar logo na infância do escolhido ou na puberdade por causa do desequilíbrio energético do adolescente. Muitas crianças e adolescentes adoecem e a causa das doenças é a utilização energética por espíritos e entidades que vibram no negativo. Na Inglaterra, crianças são escolhidas na tenra infância para cantar em corais. Depois da adolescência, quando a voz muda, muitos são dispensados porque a voz perdeu a tonalidade.
Alguns espíritos não se submeteram ao processo e às normas reencarnatórias e querem “forçar” a aquisição de um corpo e assim viver na terra. Tais manifestações mediúnicas em crianças e adolescentes são chamadas de “doenças xamânicas” ou abdução ou obsessão.
Os xamãs noviços são submetidos aos mais variados tratamentos para que possam ser primeiro curados de todos os males naturais ou impostos por espíritos sabedores de suas habilidades mediúnicas. É preciso morrer para renascer. Um dos treinamentos psíquicos faz com que o noviço sinta mentalmente seu corpo ser retalhado em pedaços e servido a famintos demônios. Talvez haja aí uma semelhança com a Paixão de Cristo.
Outro treinamento leva o noviço a se transportar mentalmente para uma árvore que é cortada em pedaços. A árvore é tratada com o espírito do indivíduo materializado nela, da mesma forma que alguns índios brasileiros fazem. Depois disso ele está habilitado a efetuar “vôos da alma”. Sai do corpo e visita outros mundos de forma a livrar seu próprio espírito de qualquer imposição demoníaca. Essas viagens habilitam os noviços a entrar em contato com a linguagem das cores do arco-íris ou sete raios e daí ele aprende a ler a aura a serviço da cura e do bem. Tudo isso sem complemento algum de alucinógeno, fumo, bebida ou qualquer coisa tóxica, uma vez que esses elementos levam o usuário ao mundo das suas próprias ilusões internas, indefeso e incapaz de discernir o joio do trigo, além de se expor à vulnerabilidade de domínio e possessão do seu corpo por demônios enganadores e vendedores de favores.
Acredita-se que aquele “xamã” que pratica ou aceita encomendas para a maldade seja a própria encarnação da maldade vestida em aparente pele de cordeiro. Essa visão tibetana pode ser arremessada como pré-requisito básico a todas as terapias energéticas em voga hoje no Brasil e no mundo ocidental, aí incluídas Reiki, Cura Prânica, Mãos de Luz etc., todas vindas da mesma origem e alimentadas pela mesma fonte universal.
O Espiritismo Kardecista faz as mesmas recomendações. A responsabilidade de seus praticantes e curadores é a mesma de segurar um cajado, como faziam os curadores judaico-cristãos, desde Moisés. Também não ficam distantes desse contexto os trabalhadores da área de saúde porque na verdade estamos falando de diferentes matizes da mesma luz. Há de chegar o momento em que todos trabalhemos em parceria.
(*) José Joacir dos Santos é Psicoterapeuta, Jornalista e formando em Terapia Iniciática com o Xamã Rowland Barkey. Texto atualizado em 11/07/2020